A obra-prima com Tom Hanks, na Netflix, que foi ignorada pela crítica Bruce W. Talamon / Netflix

A obra-prima com Tom Hanks, na Netflix, que foi ignorada pela crítica

A vida é movimento e quanto mais cedo se entende que é inútil lutar contra seus desígnios; que é quase impossível estancar a correnteza de novos acontecimentos que se sobrepujam uns aos outros; que não faz sentido querer impor sua própria vontade à espiral de fogo que toma os caminhos do homem, numa concertação inexpugnável de terra, fogo, ar e água, além daquilo que não se sente, mais sereno alguém se torna. O mundo era ainda maior cerca de século e meio atrás, um tempo em que o homem era refém das circunstâncias, estava sempre a reboque dos fatos e nunca conseguia entender muito bem sua própria sociedade. A invenção dos tipos móveis e, por extensão, o surgimento da imprensa, mais de quatrocentos anos antes, em 1439, pelo alemão de Johannes Gutemberg (1398-1468), não veio acompanhada das necessárias transformações de que as pessoas se ressentiam. Saber ler era um privilégio para muito poucos num planeta que apenas começava a se industrializar — e que permanecia imerso na ignorância e na má-fé de patrões que não reconheciam qualquer direito a seus funcionários, isso para ficar somente no que acontecia nas cidades maiores. Nos rincões que a lei não alcançava, o que valia ainda era o Código de Hamurábi e sua lei de talião, sem, claro, espaço para sutilezas filosóficas como o entendimento e a preservação de minorias étnicas.

Homem da guerra, Jefferson Kyle Kidd, o personagem de Tom Hanks em “Relatos do Mundo” (2020) — mais um para sua vasta galeria de tipos memoráveis —, passa a ganhar a vida exercendo um ofício um pouco menos arriscado, mas igualmente estimulante: narrar notícias aos habitantes de povoados longínquos da América profunda num tempo em que isso era o extremo do requinte no processo de difusão de textos jornalísticos. Essa imagem, trabalhada com a sofisticação de sempre por Paul Greengrass — com quem Hanks volta a estabelecer uma parceria de sucesso, como já se dera em “Capitão Phillips” (2013) — enaltece mais uma vez o heroísmo como virtude fundamental para a manutenção de padrões mínimos de civilidade entre os povos, mesmo os de uma nação em comum, que aprendia a duras penas a respeitar a diversidade. “Relatos do Mundo” apenas arranha argumentos a exemplo da promulgação da Décima Terceira Emenda, em 31 de janeiro de 1865, que abolia o regime escravocrata nos Estados Unidos — provocando a fúria do sul antiabolicionista —, mas é eficiente ao esmiuçar outros aspectos sociológicos do período que se propõe a retratar, cenário de muita conflagração no país.

O roteiro de Greengrass e Luke Davies é ambientado em 1870, cinco anos depois da Guerra Civil Americana, também chamada de Guerra de Secessão, entre 12 de abril de 1861 e 9 de abril de 1865, que definiu os rumos a serem tomados pelos Estados Unidos quanto a ser transformar num Estado Democrático de Direito de fato. Kidd, livremente inspirado num personagem real tirado do livro homônimo da romancista americana Paulette Jiles, é um leitor de notícias do Texas que roda a América a fim de manter bem-informados os que dispõem de dez centavos e de tempo para ouvir, como ele costuma dizer para vender seus serviços. Num desses deslocamentos, o personagem de Hanks se depara com o cadáver de um homem negro, enforcado numa árvore. A seguir, a cena se desdobra para um vulto que corre para dentro do bosque; o capitão Kidd persegue o fugitivo e ele e o público passam a saber que se trata de uma garota branca, de cabelos e olhos claros, apavorada por temer que lhe aconteça o mesmo. Conforme a sequência avança, se conhece a identidade dela: é Johanna Leonberger, papel destrinchado com primor pela estreante Helena Zengel, uma germano-americana criada por uma tribo Kiowa não se sabe por quê. Hanks e Zengel contracenam até o belo desfecho, e nessa primeira virada, Greengrass aproveita para introduzir o problema racial na formação dos Estados Unidos, mencionando os três principais grupos étnicos a povoar o território americano, índios, brancos e negros, nessa ordem, feito no Brasil — como se sabe, nos dois países se verifica a inserção de imigrantes italianos e asiáticos ao longo da primeira metade do século 20.

“Relatos do Mundo” torna-se um road movie emocionante em que Kidd e Johanna partilham das mesmas apreensões quanto ao futuro e arrostam iguais perigos num Velho Oeste por se civilizar, encarnados por tipos marginais como Ron Avalon, de Michael Angelo Covino, com quem o capitão divide uma sequência de tiroteio das mais mesmerizantes do cinema. A trilha sonora, magistral, de James Newton Howard ajuda o espectador a absorver um bom bocado do que era viver num país ainda em busca de identidade, mas que vultos como os representados pelo protagonista de Tom Hanks tornaram uma potência, a despeito de tudo que se deva criticar nele.


Filme: Relatos do Mundo
Direção: Paul Greengrass
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.