Deus não é besta de morar no seu coração

Deus não é besta de morar no seu coração

Odeio odiar pessoas. No duro. Eu sei que existe no mundo mais gente boa, de coração mole, do que gente ruim, áspera como o deserto. Só que os ruins são muito mais competentes em matéria de tripudiar, de propalar a burrice e a maldade como se fossem uma espécie de vantagem. Assisto pela TV às novas pílulas da propaganda política de um determinado partido, nas quais o semblante de um sujeito cria em mim enorme repulsa. É desagradável sentir tamanha ojeriza por um semelhante, mas, todos já sabem — exceto, os incautos cativos — que fala ali um homem deveras cruel. Cultivar sentimentos brutos e primitivos por determinados indivíduos, ainda que sejam eles uns pulhas, não fecunda em mim nada mais do que a amargura. Nunca soquei o queixo de um homem. Eu não nasci para odiar. Eu nasci para amar as pessoas. Como a planta que se banha de sol. Como o rio a lamber as pedras, despoluído dos podres humanos. Às vezes, funciona; outras vezes, não. É o tipo de situação que não consigo evitar. Não sou capaz de disfarçar indignação ao assistir àquele homúnculo hipócrita tergiversando descaradamente, valendo-se de falsa suavidade e de uma rara humildade que, nem de longe, possui; ao afirmar que, tendo um povo de Deus no coração, ninguém segura essa nação. Sequer tinha noção que o dito-cujo possuísse coração. O possuído não parece ter nenhum, nada, nunca, senão uma bomba muscular, elástica, tola e ordinária a ejetar incansavelmente fel e veneno pelas varizes claudicantes das suas veias escabrosas. Não sou pedra, nem sou Rosa. Nos grandes sertões interiores, confabulo: se Deus de fato existe, não será besta de querer morar no coração de gente malsã. Em tese, tergiverso como se poeta não fosse: Deus não combina com a política, muito menos, com a iniquidade. No fundo, na rasura dos meus pressentimentos infecundos, penso em versos diversos, presumo que, a bem da verdade, Deus combina com um quase nada, muito menos, com a humanidade, uma criatura, supostamente, moldada a sua imagem e semelhança. Parece que está tudo certo, mas, não está. A saúde mental coletiva continua a ser testada a todo instante. Incluído nessa fazenda de emoções atrozes, não me aparto dos bezerros aberrantes. Espero, contudo, antes de mais nada, não surtar até que me torne um homem livre. A campanha política que hora se inicia nestas plagas sofridas, pobretonas, promete aflição e loucura até os últimos instantes, até as últimas consequências, até que as urnas eletrônicas do poder judiciário — criaturinhas cibernéticas, pragmáticas, muito mais confiáveis do que gente propriamente dita — façam o seu inaudito trabalho, o virtuoso escrutínio líquido e certo da vontade popular expressa em votos, tudo isso em prol das legítimas escolhas de um povo inculto, deseducado, porém, livre da tutela, da arbitrariedade e da tirania que, volta e meia, permeiam como pragas daninhas e levitam em nuvens fedorentas sobre as adoráveis veredas de democracia.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.