Ousado e quase perfeito, filme na Netflix tem 100% avaliações positivas Divulgação / Viacom Studios

Ousado e quase perfeito, filme na Netflix tem 100% avaliações positivas

Se fosse possível classificar o cinema indiano com um único vocábulo, essa palavra teria, sem dúvida, de evocar a ideia de ousadia. Como isso pode até ser possível, mas certamente não é desejável, há que se aludir também ao exagero, recurso de que diretores hindus se valem desde sempre a fim de falar de assuntos elementares, tão banais que escandalizam precisamente por sua vulgaridade. Essas situações corriqueiras, esses fatos nada espetaculares da vida de qualquer um, revestem-se logo de uma aura de mistério, uma vez que há sempre um elemento oculto de alguma importância à espreita, pronto para tomar a trama de assalto. O público, por óbvio, já o espera, certo de que será exatamente este o detalhe a fazer a diferença e justificar as demais   extravagâncias por aflorar. Nada, nem mesmo aquela cantoria toda é em vão.

Sriram Raghavan incorpora um argumento no mínimo inventivo a fim de proporcionar a seu filme a chance de avançar sobre as expectativas e reduzi-las a pó. Em seu “Assassinato às Cegas”, thriller assumidamente insensato que junta deficiência física, música, casamento por conveniência e perversão sexual, o diretor elabora uma crítica com dimensões de verdadeira iluminação à hipocrisia humana. Exemplo mais bem acabado quanto a ilustrar tal raciocínio é a cena em que o casal de amantes formado por Simi, vivida por Tabu, e Manohar Jawanda, o inspetor de polícia mulherengo e corrupto interpretado por Manav Vij, tenta livrar-se da maior evidência de que algo está fora da ordem. Os dois assassinaram sem muita convicção — se é que isso é possível — o marido de Simi, Pramod, de Anil Dhawan, que frustrou mais um encontro fortuito dos adúlteros ao voltar mais cedo de uma viagem a trabalho. Existe, claro, a devida carga dramática no roteiro de Raghavan, Arijit Biswas, Hemanth M. Rao, Pooja Ladha Surti e Yogesh Chandekar, mas há também uma dose cavalar de humor, ora ingênuo, ora perniciosamente malicioso, muito bem encarnado por Akash, o pianista que simula ser cego e por esse motivo tem a vida revirada. O anti-herói de Ayushmann Khurrana e implicado no crime por acaso, num lance francamente tragicômico, à Chaplin ou “O Gordo e o Magro”, e o malabarismo que é obrigado a executar a fim de levar a cabo a denúncia do que não pode ter visto é a escolha mais feliz em que o diretor passa a trabalhar.

Tomando a cegueira forjada de Akash à luz de uma grande brincadeira, Raghavan jamais se preocupa em esclarecer por queseu protagonista se comporta assim, se foge do mundo ou de si mesmo. A provável psicopatologia do personagem passa longe de ser a preocupação central de “Assassinato às Cegas”, e o diretor prefere, acertadamente, concentrar-se nos planos de Akash para levar as autoridades até os culpados. A entrada em cena de Sophie, vivida por Radhika Apte, é o respiro romântico de que um filme que se revela tão tenso e acelerado tanto necessita; malgrado nunca tenham nada, Sophie compreende a agonia de Akash, intui que ele de fato padece de algum mal secreto terrível, mas que por uma razão muito forte deve se preservar mudo, além de cego. A inclusão de uma subtrama envolvendo tráfico de órgãos, na primeira grande guinada do filme, ameaça a coesão do roteiro, que felizmente retoma a direção do nonsense, apontando para a conclusão plena de ricos nuances dramatúrgicos.

Como não poderia deixar de ser em produções de Bollywood, “Assassinato às Cegas” é todo marcado por números musicais — tantos que exasperam o espectador mais pragmático —, mas a opção de K.U. Mohanan por uma fotografia mais sóbria, ainda mais se comparada ao que se observa no cinema indiano, pródigo de rosas-choque e verdes-limão cintilantes, oferecem, além de conforto, a certeza de que o suspense se mantém firme até o último quadro. De uma maneira ou de outra, as produções indianas sempre causam surpresa.


Filme: Assassinato às Cegas  
Filme: Sriram Raghavan
Ano: 2018
Gêneros: Crime/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.