Comovente e engraçado, filme da Netflix vai acalmar seu coração, te fazer rir alto e derramar algumas lágrimas Annette Brown / Netflix

Comovente e engraçado, filme da Netflix vai acalmar seu coração, te fazer rir alto e derramar algumas lágrimas

O cinema é, em muitas ocasiões, a grande chance de alento — às vezes, a única —, para corações miseravelmente partidos. Bem devagar, tristeza vai se metamorfoseando em alegria, e, quiçá, com muita sorte se torne felicidade, deixando implícita para aquele que sofre a mensagem de que por mais negra e interminável que pareça a noite que castiga a alma já tão machucada, descrente de solução, dentro de algumas horas vai (ou, ao menos, pode) raiar um sol abrasador, que dilui todo resquício de melancolia. A maneira como cada um alcança sua cura geral envolve processos elaborados de autoanálise, a partir dos quais se tem um indício do novo caminho a se tomar, e isso nem sempre é só uma figura de linguagem. Há quem tenha de se lançar numa jornada um tanto arriscada, de um lugar em que se está perigosamente confortável para um outro, que não se dá a conhecer por inteiro logo de cara na tentativa desesperada de exorcizar fantasmas de tempos idos, mas que não passam. Esses atos de martírio, em que se sacrificam certos prazeres, que escravizam em troca de outros, libertadores, machucam, deixam suas indeléveis cicatrizes, mas também abrem espaço para o tão ansiado milagre da cura.

O diretor Rob Burnett se propõe a desencadear esse complexo mecanismo em “The Fundamentals of Caring” ao levar seus personagens por uma jornada de autoconhecimento, de transformações quase milagrosas, tanto que nem parecem críveis. Muito badalado no Festival Sundance de Cinema quando de sua estreia, em 2016, a trama apresenta os tais fundamentos do cuidado do título sob a forma de um sonoro acrônimo, ALOHA —Ask, Listen, Observe, Help, Ask Again, ou Perguntar, Ouvir, Observar, Socorrer, Perguntar Outra Vez. Todos esses quatro verbos devem ser rigorosamente conjugados por quem pretenda se tornar um cuidador de pessoas com necessidades especiais, caso de Benjamin, o Ben, eximiamente interpretado por Paul Rudd. Sem nenhum excepcional talento para o ofício, mas com pilhas de contas a pagar, o personagem de Rudd se aventura num curso de formação de cuidadores profissionais, sabendo que todo o seu esforço pode acabar sendo debalde: três anos antes, seu filho sofrera um acidente mortal por negligência sua, e disso lhe advieram sequelas que permanecem até então. A mais evidente é, como sói acontecer nesses casos, o fim do casamento com Janet, de Julia Denton, que ele devotadamente resiste a admitir, desde que a tragédia os arrebatou. Mesmo assim, ele leva seu propósito adiante, recebe seu esperado diploma, e logo é mandado à entrevista com Elsa, mãe de um portador da distrofia muscular de Duchenne, uma doença degenerativa e incurável. Boa atuação de Jennifer Ehle, a entrada de Elsa em cena abre caminho para que comece a se desdobrar o conflito central do roteiro. A personagem procura alguém devidamente capacitado para tomar conta de Trevor, não o que lhe parece, com razão, um aventureiro. O primeiro contato entre Trevor, um desempenho excelente de Craig Roberts, desvela alguns dos muitos obstáculos que Ben terá de vencer se quiser o emprego. Dono de uma personalidade rica, capaz de tiradas autodepreciativas como se saídas de uma metralhadora giratória — tantas que acabam cansando, assim como os trotes que vai aplicar num Ben sempre estupidamente crédulo —, Trevor ganha uma resposta atravessada a uma de suas piadas, direcionada não a si mesmo dessa vez, mas ao candidato a cuidador, que sente que “esse é o cara”, e Ben é contratado.

Seu jeito irreverente de ser não chega a ponto de fazer Trevor suficientemente maduro para encarar a vida além das paredes de casa, e é aí que Ben entra. Aos dezoito anos, ele segue de todo dependente da mãe, vendo a vida passar pela televisão — ou o que entende como sendo “a” vida — e alimentando intenções eróticas com Katy Perry. Ao assistir à matéria sobre um tal poço, o mais profundo já construído, se interessa por conhecê-lo, possibilidade que a mãe rechaça de imediato. Vendo que esse pode ser o sopro de vida que falta ao garoto, Ben insiste na ideia e ganha a parada. O argumento, muito bem desenvolvido por Burnett, permite que Craig vivencie outras realidades e se convença, afinal, de que não é a única pessoa no mundo com problemas. Surge no caminho dos dois primeiro Dorothy, a menina-problema de Selena Gomez, responsável por descobertas importantes para o personagem de Roberts; alguns quilômetros mais tarde, embarca com eles Peaches, papel de Megan Ferguson, a caipira cujo marido serve no Afeganistão e precisa chegar à casa da mãe em algum lugar de Nebraska para ter seu bebê depois que fica a pé à beira da estrada. Tanta novidade, por óbvio, chacoalha as certezas de Craig, mas também as de Ben, que se torna um pai adotivo para seu paciente depois da segunda rejeição de Bob, o pai biológico, de Fred Weller.

O desfecho, em que Ben retoma uma carreira literária que quase passa ao largo no enredo e registrando toda a sua vivência como cuidador de Craig, repisa surrados clichês, mas a essa altura o espectador já foi capturado pelo carisma do elenco, o grande trunfo de “The Fundamentals of Caring”, pouco cerebral, quase todo afetivo.


Filme: The Fundamentals of Caring
Direção: Rob Burnett
Ano: 2016
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10