Um filme apaixonado sobre as ideias de uma mulher, romance com Elle Fanning, na Netflix, vai te tirar de sua zona de conforto Ricardo Vaz Palma / Pyramide Films

Um filme apaixonado sobre as ideias de uma mulher, romance com Elle Fanning, na Netflix, vai te tirar de sua zona de conforto

Uma adolescente britânica do início do século 19 mudaria a literatura mundial, revolucionaria o jeito de se contar uma história criando algo absolutamente novo e, de quebra, chegaria ao topo, glorificada por transcender sua própria vida e inspirar milhões de outras meninas mundo afora. Sua criação, a releitura de um clássico da mitologia grega — delirante, perturbador, filosoficamente refinado —, perpassa a humana fragilidade, mas surpreende ao discorrer sobre as transformações que o homem, o mais irrequieto dos animais, não cansa de pretender para sua vida, para a vida de quem o rodeia, chegando as portas da blasfêmia e da loucura ao emular poderes exclusivamente divinos, ansiando formar uma outra sociedade, gerar o novo homem. Esse sonho tresloucado apela à falsa ideia de interesse coletivo, mas é, em verdade, a compensação solitária de vaidades muito íntimas, de mágoas muito profundas; questiona imagens cristalizadas no inconsciente de toda uma geração — cercada pelo passado que resiste em ceder lugar ao futuro, corporificado por máquinas que aludem a uma nova era e novos desafios —, ao mesmo tempo em que abre espaço para avaliar sua importância.

Em “Mary Shelley” (2018), a saudita Haifa Al-Mansour celebra a figura da personagem-título, autora de “Frankenstein”, o Prometeu Moderno, reavivando a discussão cada vez mais urgente sobre a necessidade feminina de afirmação, um problema de que a escritora já se ressentia quando da publicação de sua obra-prima bicentenária, em 1818. A cinebiografia de Mary Shelley (1797-1851) em muitos momentos até parece que vai derivar perigosamente para a influência nefanda que o poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822), primeiro seu amante e depois seu marido num casamento marcado por vicissitudes de toda ordem, teria exercido sobre sua produção, mas Al-Mansour é hábil em fazer com que sua personagem-título, incorporada com desvelo por Elle Fanning, retome o protagonismo sempre que isso ameaça ocorrer. Percy, de Douglas Booth, chega a perguntar textualmente se Mary sente-se uma escritora, e ouve uma resposta mais literária impossível. Era já a artista que fervia nela, e que ele, a seu modo sorrateiro, aspirava a domar e tolher.

O roteiro aplicado de Emma Jensen menciona a viagem dos Shelley à casa do poeta romântico Lord Byron (1788-1824) em Genebra, onde, numa noite de tédio, Mary, Percy e o anfitrião, papel de Tom Sturridge, além de Claire, a meia-irmã espaçosa interpretada por Bel Powley, e o escritor Thomas Hogg, personagem de Jack Hickey, competem entre si a fim de ver quem criaria a melhor história “de fantasma”. Como se pode supor, Mary vence o concurso, mas o que se passa antes, a título de prólogo para explicar como uma garota insegura e mesmo medrosa torna-se a escritora que abala a hegemonia masculina num meio em que o domínio dos homens era como um dado da natureza, indiscutível e imutável. Fanning tem maturidade artística e técnica o bastante para fazer crível a transformação de sua personagem, que enfrenta a ira contida de um pai amoroso, o jornalista e escritor William Godwin (1756-1836), de um Stephen Dillane assombrosamente preciso, com toda a razão temeroso pela honra da filha, e assume a relação com Percy. Se Mary escapa à pretensa subjugação paterna, deixa-se gostosamente capturar pela personalidade castradora de seu novo companheiro, imperscrutável em seus ardis, mas também de uma clareza cínica e ofensiva quando o quer. Booth confere a seu Percy Shelley o espírito que o personagem demanda, de uma liberdade suicida, homicida, destrutiva em essência, que encerra toda a fria racionalidade mesmo em questões que clamam por drama. A morte da primeira filha do casal é o exemplo mais decisivo quanto a pontuar suas diferenças. Enquanto Percy supera a morte da criança com uma facilidade que exaspera, Mary faz do episódio o mote do trabalho que a transformaria num gênio. A pretensão de sobrepujar os desígnios da Providência e trazer seu bebê de volta à vida é o fulcro de “Frankenstein”, justamente denominado de “O Prometeu Moderno”, uma referência ao personagem da mitologia grega que rouba o fogo, a representação por natureza da técnica e da sabedoria, e é castigado a viver eternamente, mas em agonia insuportável. Um epítome do que foi a vida mesma de Mary Shelley, sempre a combater titãs.


Filme: Mary Shelley
Direção: Haifa Al-Mansour
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.