Uma adolescente britânica do início do século 19 mudaria a literatura mundial, revolucionaria o jeito de se contar uma história criando algo absolutamente novo e, de quebra, chegaria ao topo, glorificada por transcender sua própria vida e inspirar milhões de outras meninas mundo afora. Sua criação, a releitura de um clássico da mitologia grega — delirante, perturbador, filosoficamente refinado —, perpassa a humana fragilidade, mas surpreende ao discorrer sobre as transformações que o homem, o mais irrequieto dos animais, não cansa de pretender para sua vida, para a vida de quem o rodeia, chegando as portas da blasfêmia e da loucura ao emular poderes exclusivamente divinos, ansiando formar uma outra sociedade, gerar o novo homem. Esse sonho tresloucado apela à falsa ideia de interesse coletivo, mas é, em verdade, a compensação solitária de vaidades muito íntimas, de mágoas muito profundas; questiona imagens cristalizadas no inconsciente de toda uma geração — cercada pelo passado que resiste em ceder lugar ao futuro, corporificado por máquinas que aludem a uma nova era e novos desafios —, ao mesmo tempo em que abre espaço para avaliar sua importância.
Em “Mary Shelley” (2018), a saudita Haifa Al-Mansour celebra a figura da personagem-título, autora de “Frankenstein”, o Prometeu Moderno, reavivando a discussão cada vez mais urgente sobre a necessidade feminina de afirmação, um problema de que a escritora já se ressentia quando da publicação de sua obra-prima bicentenária, em 1818. A cinebiografia de Mary Shelley (1797-1851) em muitos momentos até parece que vai derivar perigosamente para a influência nefanda que o poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822), primeiro seu amante e depois seu marido num casamento marcado por vicissitudes de toda ordem, teria exercido sobre sua produção, mas Al-Mansour é hábil em fazer com que sua personagem-título, incorporada com desvelo por Elle Fanning, retome o protagonismo sempre que isso ameaça ocorrer. Percy, de Douglas Booth, chega a perguntar textualmente se Mary sente-se uma escritora, e ouve uma resposta mais literária impossível. Era já a artista que fervia nela, e que ele, a seu modo sorrateiro, aspirava a domar e tolher.
O roteiro aplicado de Emma Jensen menciona a viagem dos Shelley à casa do poeta romântico Lord Byron (1788-1824) em Genebra, onde, numa noite de tédio, Mary, Percy e o anfitrião, papel de Tom Sturridge, além de Claire, a meia-irmã espaçosa interpretada por Bel Powley, e o escritor Thomas Hogg, personagem de Jack Hickey, competem entre si a fim de ver quem criaria a melhor história “de fantasma”. Como se pode supor, Mary vence o concurso, mas o que se passa antes, a título de prólogo para explicar como uma garota insegura e mesmo medrosa torna-se a escritora que abala a hegemonia masculina num meio em que o domínio dos homens era como um dado da natureza, indiscutível e imutável. Fanning tem maturidade artística e técnica o bastante para fazer crível a transformação de sua personagem, que enfrenta a ira contida de um pai amoroso, o jornalista e escritor William Godwin (1756-1836), de um Stephen Dillane assombrosamente preciso, com toda a razão temeroso pela honra da filha, e assume a relação com Percy. Se Mary escapa à pretensa subjugação paterna, deixa-se gostosamente capturar pela personalidade castradora de seu novo companheiro, imperscrutável em seus ardis, mas também de uma clareza cínica e ofensiva quando o quer. Booth confere a seu Percy Shelley o espírito que o personagem demanda, de uma liberdade suicida, homicida, destrutiva em essência, que encerra toda a fria racionalidade mesmo em questões que clamam por drama. A morte da primeira filha do casal é o exemplo mais decisivo quanto a pontuar suas diferenças. Enquanto Percy supera a morte da criança com uma facilidade que exaspera, Mary faz do episódio o mote do trabalho que a transformaria num gênio. A pretensão de sobrepujar os desígnios da Providência e trazer seu bebê de volta à vida é o fulcro de “Frankenstein”, justamente denominado de “O Prometeu Moderno”, uma referência ao personagem da mitologia grega que rouba o fogo, a representação por natureza da técnica e da sabedoria, e é castigado a viver eternamente, mas em agonia insuportável. Um epítome do que foi a vida mesma de Mary Shelley, sempre a combater titãs.
Filme: Mary Shelley
Direção: Haifa Al-Mansour
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10