Uma pequena obra-prima escondida na Netflix Divulgação / Cinekdoque

Uma pequena obra-prima escondida na Netflix

A vida é uma tela em branco. À medida que os anos passam, vamos preenchendo esse espaço com as cores que nós mesmos escolhemos, tomamos posse da vida como deveria ter se dado desde o princípio, malgrado essa maldição a reger o homo sapiens, cujos espécimes permanecem incapazes de cuidar de si mesmos por muitos anos, alguns mais que outros. Da mesma forma, para os que creem, Deus dá ao homem o dom da vida e cabe ao homem viver sua própria vida, Deus não irá vivê-la por ele, não irá sofrer por ele, ainda que se compadeça de seu tormento e sempre o ajude de alguma maneira, não vá descer de Seu Reino a fim de livrá-lo de todo perigo, não obstante esteja sempre a orientá-lo e a olhar por ele. Não faria sentido esperar isso de Deus. É como se nossos pais nos dessem um presente valioso e o mantivessem na redoma de um vidro muito grosso, muito resistente, para ser apenas admirado, que só eles podem remover e de que só nos seria concedido desfrutar de tempos e tempos. A imagem da tela em branco é muito mais que uma simples metáfora para muita gente, e a figura que se forma nesse quadro, nem sempre harmoniosa — e mesmo disfórmica, até monstruosa —, escandaliza olhares mais sensíveis. Deslinda-se um dos dilemas fundamentais da natureza humana: adequar sua visão de mundo ao que o restante da humanidade pensa dele ou sustentar sua versão mais legítima de si mesmo e se apresentar aos outros como se é em verdade, arcando com as consequências de cada escolha tanto num caso como no seu oposto?

Em “Belmonte” (2018), o uruguaio Federico Veiroj parte dessa construção imagética, telas por se completarem, fazendo de seu personagem central o trampolim para se lançar a questões mais densas. O equilíbrio entre viver e ser artista, como qualquer outro equilíbrio que se tente estabelecer na vida, é delicado, complexo, e é desse modo que o diretor o entende e o explicita em seu filme. O roteiro de Veiroj se ancora numa melancolia progressiva, que bem como as pinturas apresentadas de maneira a pontuar a narrativa, se insinua ao público até o seduzir, e muito do mérito dessa atmosfera envolvente do longa deve-se ao personagem-título, carismático e distante a um só tempo.

Javier Belmonte é um artista, mas antes de sê-lo, é um homem, um homem amargurado, flagelado por suas pequenezas. O trabalho de Belmonte, grande personagem feito ainda maior pelo talento de invulgar de Gonzalo Delgado, registra corpos masculinos nus, mas não propriamente de homens. Os seres ali retratados se assemelham mais a faunos, quiçá à espreita dos homens, e ainda mais das mulheres, amalgamando-se ao fundo azul, de que se destaca, não por acaso, o falo, ora rijo, ora em descanso. Em raras ocasiões a inteireza do ser homem foi materializada com tamanha amplidão e em recortes tão singelos e ao mesmo tempo tão crus. Aquelas criaturas teratológicas são todas, em alguma medida, o próprio Belmonte. Sua obra é uma sucessão de autorretratos, dispostos no caos particular de seu estúdio, mas que não perturbam ninguém, nem mesmo a filha, Celeste, de nove anos, vivida pela impecável Olivia Molinaro Eijo. Até mesmo Celeste, insegura e caprichosa como quase toda criança dessa idade, é capaz de ver Belmonte por trás de tanto impressionismo, ainda que não o consiga verbalizar. A filha é um mistério para Belmonte, que aos poucos se descobre embaraçado com a paternidade. Talvez a própria masculinidade tenha se lhe tornado um enigma, já que não resiste à investida da mulher de um cliente, mas tomado pela culpa, não consegue ir até o fim. Ela se frustra, mas ele se sente aliviado.

Prestes a ter seus trabalhos mais recentes expostos numa galeria de Buenos Aires, o personagem de Delgado só consegue pensar na ex-mulher, Jeanne, interpretada por Jeannette Sauksteliskis, grávida. Veiroj envereda pela crise existencial do protagonista, que tenta preencher seu vazio valendo-se de Celeste. Aquele homem outrora ponderado, cordato, maduro, cede lugar a alguém que ele próprio não reconhece, de atitudes mais pueris que as da filha, que inconscientemente ou não, sente estar sendo usada e o rejeita. É impossível não sentir-lhe pena, ao passo que quem assiste julga-o um bobalhão, na melhor das hipóteses, e um canalha, no pior cenário; Belmonte é um estranho para Celeste, que também o repele, e a paternidade volta ao centro do enredo também na direção inversa. Se o personagem-título percebe que a relação com a filha pequena azeda dia a dia, Belmonte também se incomoda sobremaneira com o possível adultério homossexual do pai, papel de Tomás Wahrmann — uma cena rápida, de fina sutileza, que demanda da audiência além de atenção, perspicácia —, sem saber como reagir a esse mal-estar.

O filme tem escolhas narrativas interessantes, a exemplo do tropo dos Belmonte se dedicarem a uma atividade escandalosamente materialista, com o irmão Marcelo, de Marcelo Fernandez Borsari, aterrado em casacos de pele numa câmara frigorífica, sem dúvida um bom respiro cômico, ainda que brevíssimo. Se o personagem-título parecia sem rumo, acossado pela própria condição masculina, no caminho para o desfecho raia uma promessa de redenção, nos braços da linda Mónica, a que a brasileira Giselle Motta dá vida. Final feliz? Nem tanto.


Filme: Belmonte  
Direção: Federico Veiroj
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10