Do coreto, pode-se ver a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Imponente, administrando as graças na velha cidade. Um pouco de bonanças aqui, bênçãos acolá. Um pouco a frente há um café engraçadinho, chamado Aroma café com arte, onde se pode beber uma mojitito, que inclui um destilado, de nome fiu-fiu, misturado com polpa de cajazinho. Imagino uma invenção local ou coisa que o valha. Abaixo, o rio, que escorre indeciso, por conta de seu volume escasso, mas é velho e sabedor de histórias, por isso insiste em existir, como sempre fez e fará. Para quem mira ladeira abaixo, à direita pode-se encontrar um restaurante peculiar, o 3.16, cujo logo é uma ovelha e, não é tão obvio quanto parece, tem seu nome retirado de Novo Testamento. João 3, versículo 16, para ser exato, de onde se lê coisas sobre pastores e seu rebanho. Ali não é possível tomar bebidas alcoólicas. O bom comportamento é uma praxe no recinto. Como as noites estão frias nesse final de maio e início de junho, dá para largar o dia para trás e iniciar uma rotina nova, aquecido, até que o filme de abertura seja exibido. Na Catedral Santana, há uma celebração. Do interior emana, harmônico como incomumente se ouve, “bendito o que vem em nome do Senhor”, entoado, como imprime a tradição. Uma situação realmente particular, uma igreja bastante movimentada em uma segunda-feira. É a cidade de Goiás, e a Igreja está no centro de sua ideia, de sua essência. Um pouco abaixo, vê-se o cine teatro São Joaquim, impávido, como uma imensa gruta cavada na rocha, engenhosamente edificado no centro do país, de onde brota a sétima arte em períodos esperados. Ao redor, pedras modelam um estado de coisas, para além de pavimentar as ruas antigas. Encrustadas no solo milenar, que não executa sua função há centenas de anos, seu intenso significado é mais simples do que se pode supor. É a civilização imposta, datada, mas absolutamente modificadora. Há uma porção considerável de árvores distribuídas às margens do rio e dispostas em locais distintos na pequena urbe. A causa ambiental parece fazer sentido quando há rio e árvores, mesmo que a terra encoberta pelos milhares de pedras, de todas as formas e tamanhos, não dê mais o ar da graça.
A cidade, com suas já citadas pedras, distribuídas nos vãos entre casas amontoadas, promove um andar bêbado e desequilibrado no incauto, no forasteiro, empurrando-o para fora como um intruso e, ao longo de um tempo — o tempo sempre regula —, seleciona os insistentes para, logo depois, absorvê-los pelo resto do período. Do coreto ao cine teatro há uma distância infinita.
O FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental) cresceu, é um adulto experiente, passou pela pandemia e sobreviveu. Está imenso, polifônico, é um mundo. É a cidade de Goiás, pois a cidade, seus habitantes e suas coisas são uma unidade, como diz a personagem do filme Nós, de Letícia Simões. Ou, ainda, “a montanha é o mundo para alguém”, segundo Eami, personagem homônima do filme de abertura da mostra de cinema do festival. Dentro da mística caverna do entretenimento estão as pessoas, para julgar as produções e seus temas, coisa menos relevante, uma vez que a sétima arte é mais bem aproveitada quando nos entregamos à mágica, como nos truques dos ilusionistas. Mas o filme está lá e o impulso nos impõe a necessidade de analisá-lo. Eami apresenta a floresta, a terra, o rio e a pureza dos meninos indígenas Ayoreo-Totobiegosode e os seus costumes. Antes intocados pelas mãos de outros homens ou pelo progresso, que nunca falha em chegar, os habitantes originários seguiam com suas tradições e seu comportamento, inseridos na natureza e invisíveis. Subjugada e excluída de seu habitat natural, Eami vaga pela floresta em busca de cura e sobrevivência. Essa é a história que Paz Encina, diretora do longa, quer contar. Com uma fotografia sensível e deslumbrante e efeitos sonoros intensos e capazes de comover de forma intensa, Eami é um registro da natureza em seu estado primitivo, bruto e imaculado e, ao mesmo tempo, ferida pela presença do novo, do ser que destoa, apesar deste ainda não ser o mais inovador representante da civilização. Os menonitas que tomam a terra também estão presos no tempo. É um grupo que rejeita o avanço tecnológico, mas representa algum acréscimo nesse sentido. Estão a meio caminho de duas épocas diferentes no tempo. Usam armas antiquadas e roupas ultrapassadas, mantêm uma tradição do passado.
Paz estuda os humanos originais. Fotografou sua vida em seu estado natural, em detalhes e com uma técnica impecável. Analisou os representantes primitivos de uma terra que os eclodiu num passado remoto. Capturou o barulho da floresta, da terra, da esfera natural ultra potente e rica, que se propôs a investigar. O som primordial simula o nascimento de um mundo. O ruído que segue e o verbo da terra que, para ouvidos sensíveis, diz o que é do que necessita.
A velha cidade, o centro histórico de Goiás, representa uma viagem no tempo. Quem o frequenta gosta de pensar que vive nos tempos de sua origem, nos anos de sua inauguração. As tradições falam sobre a retirada dos costumes e dos rituais de um momento do passado para um outro no presente. Tudo se repete para manter viva a memória, como dizem. O cinema aponta, registra e mostra o mundo e suas mais destoantes características. Ao investigar comportamentos, um filme pode apresentar o novo em todos os pontos: a moda, a fronteira, o atual. O confronto dessas três etapas, muito distintas, pode ser percebido ao caminhar, em passos calculados, pelas ruas históricas de Goiás. Entende-se, com atenção relativamente acurada, que não há mais a selva intocada, nem o rio livre dos muros de concreto e pedras, mas uma cidade antiga, moderna noutra época e inserida em um contexto atual e diferente que, para além de toda sua estrutura tradicional, tenta existir e consegue, à medida que passa o tempo e mudam seus habitantes. As três: natureza intocada, cidade de pedras e avanço estrutural tecnológico.
Eami confronta as três etapas. Os invasores são o progresso tímido, mas que estabelece mudança. O futuro é a sua colossal instalação. Paz Encina estuda os tempos da natureza e de seus humanos inseridos de uma forma orgânica ou transformando-a leve ou radicalmente. Projeto o que será se o processo continuar. O desmatamento obriga os seus seres mais primitivos a adentrar, em fuga, aos ermos mais preservados, enquanto, por necessidade intrínseca, salvam sua cultura, tratando de representá-la em suas ações. Sozinhos. A beleza de Eami, assim como a da cidade de Goiás, está no entendimento do inevitável. Feito de forma inspirada e num ritmo propenso à reflexão. Absorto em detalhes visuais inesquecíveis e impactantes. A revolta deverá ser calculada, para não bradar gritos incompreensíveis e inúteis aos ventos, que, aprendemos, mudam a todo tempo. Compreende-se, com paz, a cruel incapacidade de controlar o novo. E, desculpe o trocadilho, paz ensina.
Do cine teatro São Joaquim vê-se o coreto, a igreja apontando o céu, em uma posição imutável, para todo o sempre. Vê-se, também, o café onde se pode tomar um mojitito, coisa muito peculiar para o interior do Brasil, mas aceita-se o nome, assim como a proposta, uma vez que parece conter cachaça e cajazinho, fruto natural da terra local. E, após beber em uma jarra particularmente atraente, dá para aguentar o frio que se instala nessas noites de final de maio e início de junho.
PS.: Há rumores sobre a existência de um “quase” diário do FICA, de um beat goiano. Cuidado!