Ser livre implica coragem. Romper com padrões, aceitar-se como se é, não ter vergonha do que a vida fez de sonhos que deram lugar à necessidade de sobrevivência, mas que seguem ativos de alguma forma são decisões muitas vezes inconscientes, embora se tornem das mais importantes quanto a se preservar inteiro. Quanto mais lúcido se estiver acerca das tantas reviravoltas da vida, mais se é capaz de tolerá-las para, aos poucos, virar o jogo. Nem todos conseguem, o sacrifício muitas vezes supera a recompensa, mas sem isso, sem essa vontade de retomar do ponto em que nos obrigaram a parar, a vida mesma perde boa parte do sentido. É como se assinássemos embaixo quanto a encampar um destino que não é nosso, apenas se nos adequa por falta de outras opções. E essas outras possibilidades de escolha só nos surgem se as buscamos. Do contrário, de nada adianta divagar, supor que em algum instante mágico a vida vai dar sozinha uma virada e tudo há de encaixar na sua justa posição. Viver é um ato de resistência, de rebeldia; quanto mais se teima, quanto mais se afronta o estabelecido, mais para perto se nos achega a felicidade.
Falando de condições muito particulares da vida das mulheres, e especificamente das mulheres indianas, “A Voz do Empoderamento” (2022) não tem nenhuma intenção de reproduzir clichês. O filme de Sanjay Leela Bhansali abre o mundo de Gangubai Jagjeevandas Kathiawadi, uma menina para sempre aprisionada numa pele que não a sua, mas com a qual teve de aprender a conviver em harmonia se quisesse ter alguma ilusão de ser feliz. A grandiloquência do trabalho de Bhansali serve, entre outras coisas, para marcar posição quanto à realidade das prostitutas, que desempenham uma função sociológica de suma importância no cotidiano secreto do país, mas que são condenadas a esse mutismo dos assuntos incômodos, proibidos, e se transformam num anátema, sendo que, em se excluindo do debate a justa abordagem moral, apenas querem — e precisam — trabalhar, ganhar dinheiro, pagar contas, isto é, ser encaradas como cidadãs que também merecem a chance de um tratamento igualitário em relação a outras categorias profissionais, que exercem seu ofício quando solicitadas e, por isso, precisam inspirar um pouco mais de empatia e de pragmatismo dos outros trabalhadores.
Personagem parte verídico, parte ficcional, Gangubai Kathiawadi, a Ganga, era uma garota de família como outra qualquer, cheia de sonhos, como qualquer outra moça da sua idade. São precisamente esses sonhos, ingênuos, mas grandiosos, que a vão perder; por cauda deles, vai parar, a contragosto, na zona de baixo meretrício de Kamathipura, um bairro inteiro voltado à exploração de corpos femininos em Mumbai, na costa oeste da Índia. Não demora muito e Ganga, muito bem personificada por Alia Bhatt, está irremediavelmente maculada pela nódoa do estigma, malgrado galgue rápido os degraus do prestígio velado de sua atividade. E quanto mais se inteira das questões comezinhas do bordel em que atua, interditadas ao público, por óbvio, mais se convence de que urge fazer alguma coisa pelas meninas que chegam depois de dela, uma após a outra. Ganga se preocupa com sua alimentação, quer saber se os clientes as tratam bem, com respeito, trata de suas mazelas, as físicas e as do espírito.
O roteiro de Bhansali, todavia, passa por cima de possíveis tentações hagiográficas, apresentando uma Ganga que também se envenena com suas inestimáveis mágoas, inclusive a de não poder conquistar Afsaan, o galã de Shantanu Maheshwari. Nota-se que o sobrinho do personagem de Baldev Trehan, já quase cego, também deseja a anti-heroína, mas o medo do amaldiçoamento por parte da família e dos vizinhos fala mais alto. Já no desfecho, o reencontro dos dois, quando Ganga já goza do reconhecimento de todo Kamathipura, reforça essa aura de danação, sempre a espreitar o destino dos homens. Nem mesmo o jornalista Amin Faizi, vivido por Jim Sarbh, supostamente progressista, se atreve a ir além de seu fascínio platônico pela Rainha da Máfia, como a personagem de Bhatt também passa a ser conhecida, e o esplendor de Ganga reata um tanto vazia, num dos filmes hindus mais líricos já feitos.
Filme: A Voz do Empoderamento
Direção: Sanjay Leela Bhansali
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10