O documentário da Netflix que todo mundo deveria assistir

O documentário da Netflix que todo mundo deveria assistir

A Coreia do Sul se tornou conhecida por prezar valores civilizatórios os mais básicos. Gozando de instituições suficientemente vigorosas para não se permitir levar por tentações autocráticas, situação que aflige a porção setentrional da península de mesmo nome há mais de sete décadas, o país deu um salto de desenvolvimento graças a investimentos maciços em tecnologia e, o principal, em educação desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que degringolou em conflitos armados com a Coreia do Norte, oficialmente ainda em aberto, apesar do armistício, declarado três anos depois, em 1953. A nenhum dos dois territórios foi conferida a vitória, mas ao se analisar o contexto das duas nações no mundo hoje, a hegemonia da Coreia do Sul sobre a irmã do norte é evidente. O país dispõe de um governo democrático, cujo sistema econômico, sempre em visível crescimento, é responsável por garantir à população padrão de vida comparável ao de muitas sociedades europeias e mesmo de algumas cidades dos Estados Unidos. Mesmo diante dessa marcha, constante e inquestionável, rumo ao progresso, de tempos em tempos a Coreia do Sul enfrenta seus desafios quanto a se manter no bom caminho da estabilidade da democracia, provações que, por óbvio, regimes tirânicos como o de Kim Jong-un jamais hão de experimentar. Em ditaduras, como todos sabemos, assuntos espinhosos são tratados de maneira bastante diversa — o que, definitivamente, não significa que sistemas que se pautam pela liberdade de expressão e de opinião sejam particularmente sujeitos a essas perversões. Em Estados democráticos de direito, os problemas vêm à tona e, bem ou mal, são confrontados; nas nações tomadas pelo germe do totalitarismo, esses mesmos problemas são absorvidos pelas trevas, intensificando ainda mais a escuridão.

O documentário “Cyber Hell: Exposing an Internet Horror” (2022) se debruça justamente sobre um dos episódios mais abjetos de subversão às ideias de democracia e de direito já vivenciados pela Coreia do Sul. O diretor Choi Jin-seong descreve as investigações que culminaram na prisão de dois dos maiores criminosos cibernéticos da história, responsáveis pelo que se tornaram conhecidas como o Caso das Enésimas Salas, as Nth Rooms, um escândalo sexual sem precedentes na  pacífica e muito discreta jornada sul-coreana na direção de um futuro que alie integridade humana e avanços científicos, ao passo que a Coreia do Norte se aperfeiçoa em lançar mísseis, inclusive de um continente para o outro, pondo um bocado mais de lenha na fogueira da ameaça de outro enfrentamento bélico entre os povos transcorridos quase oitenta anos do fim da Segunda Guerra. Em seu trabalho, Choi apresenta entrevistas com os personagens mais relevantes da história, entre os quais repórteres e investigadores, reconstituindo as situações dramáticas mais flagrantemente indecorosas por meio de artes gráficas, a fim de situar o espectador ao longo da narrativa, até a prisão dos delinquentes.

Em 2019, salas de bate-papo no serviço de mensagens russo Telegram — conhecido pela dificuldade proposital quanto a se rastrear a origem do que e veiculado, bem como a identidade de seus usuários — entraram no radar das autoridades por divulgarem material pornográfico adquirido através de chantagem e coerção. As enésimas salas, chamadas assim por se replicarem sem controle no universo virtual, chegando a alcançar mais de sessenta mil membros, que se prontificavam a pagar para receber fotos e vídeos com cerca de cem mulheres nuas — frise-se que muitas delas eram menores de idade —, se especializaram numa modalidade de phishing (expediente que rouba arquivos por meio da indução a links fraudulentos) que capturava imagens constrangedoras dessas vítimas, a partir de um esquema nada sofisticado, mas eficiente, por atingi-las num ponto sensível. Quase todas esbarraram em Baksa e Godgod, os criadores e moderadores dos grupos, impelidas pela promessa de emprego. Os criminosos pediam fotos sensuais, elas mandavam-nas, e a partir de então, vinha abaixo a bola de neve que tratorou a dignidade e a saúde mental de quem caía na armadilha. Baksa e Godgod exigiam mais fotos, para que aquelas, as que se destinariam ao possível “trabalho”, não fossem remetidas a pais, professores e amigos.

Levou algum tempo até que a sociedade sul-coreana tomasse pé da gravidade do caso, por meio das reportagens de veículos como o jornal “The Hankyoreh” e dos programas da JTBC e SBS, as maiores emissoras de televisão do país. Cho Ju-bin, o tal Baksa, e Moon Hyeong-wook, o Godgod, foram dois dos 245 presos numa das forças-tarefa mais dispendiosas da história da Coréia do Sul, uma das mais importantes no combate a crimes cibernéticos — e tamanha visibilidade fora capaz de ofuscar o combate à recém-descoberta pandemia de covid-19. Ao todo, os indiciamentos chegaram a 3.757 processos.


Filme: Cyber Hell: Exposing an Internet Horror
Direção: Choi Jin-seong
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.