Surpreendentemente divertido, o filme louco da Netflix que é perfeito para uma noite de segunda-feira Divulgação / Dark Horse Entertainment

Surpreendentemente divertido, o filme louco da Netflix que é perfeito para uma noite de segunda-feira

Pode não ser exatamente fácil, mas sempre se pode escolher, entre duas ou mais possibilidades, a que mais se adequa ao que o restante da civilização esperaria de nós. À medida que o tempo passa, mais urgente se torna parar, tomar algum fôlego e refletir sobre o que se fez da vida até então. Inexoravelmente, irão emergir conclusões nada agradáveis, pouco serenas, com as quais se precisa conviver, administrando os conflitos de internos e as crises de consciência que advirão daí. Aceitarmo-nos não como o outro nos concebe, mas da forma que somos de fato, almejando que o arrependimento ainda que tardio de nossas faltas gere a mudança de postura, de comportamento, uma nova maneira de ver a vida, e, por fim, uma nova vida é tarefa das mais inglórias, uma vez que pouco reconhecida, e por conseguinte pouco valorizada, mas que pode ser também muito revigorante. Seja como for, se por um desejo legítimo de se reinventar e tentar salvar a porção mais valiosa que pode haver em nós, seja por uma imposição das circunstâncias — e da vida ela mesma —, tomar um novo caminho depois de muito tempo se perdendo por atalhos sombrios é uma decisão louvável. 

Inspirado na graphic novel “Polar: Came from the Cold”, do cartunista espanhol Víctor Santos, “Polar”, lançado em 2019 e dirigido por Jonas Åkerlund, narra a história de Duncan Vizla, o assassino profissional vivido por Mads Mikkelsen prestes a se aposentar depois de anos prestando o que se poderia definir como bons serviços, caso se estivesse falando de homem de bem num trabalho digno. Não, não foi Vizla quem escolheu assim: na verdade, a organização criminosa para a qual ele trabalha adota uma política bastante específica para o seu caso e não mantém em seus quadros matadores com mais de cinquenta anos, a fim de evitar problemas correlatos a deficiências visuais e males degenerativos, como o de Parkinson, mas paga uma generosa pensão, quase integral, em reconhecimento aos trabalhos prestados. Costumava ser raro alguém com esse perfil atingir tal marca, o que implicava em lucros astronômicos para a empresa, gerida por Blut, interpretado por um Matt Lucas que evidencia bem a hediondez de sua figura e dos interesses que defende. Essa fortuna permanecia, então, no caixa da própria quadrilha, mas de uns tempos para cá, a resistência dos atiradores, a começar do próprio Vizla, tem surpreendido o mandachuva do bando, que pensa num possível contra-ataque: despachar um quarteto de assassinos para dar cabo do protagonista, o mais experiente deles, enviado por Vivian, de Katheryn Winnick, a Bielorrússia para o que acredita ser sua derradeira missão. Na verdade, esse é o eixo sobre o qual gira o plano de sua execução, prontamente desvendado por ele, que elimina seus oponentes um por um, sem prejuízo da recompensa oferecida, claro, ou Blut e Vivian teriam de confessar tudo. Vizla recebe os dois milhões de dólares a que tem direito, via transferência eletrônica, e parte para seu refúgio em Triple Oak, pequena cidade de Montana, a salvo do radar da quadrilha e onde é apenas mais um dentre seus poucos habitantes. É lá que esse forasteiro, exilado até da própria vida, parece encontrar a oportunidade de se dar um novo destino, com direito inclusive à realização de que só o amor é capaz, personificada por Camille, a vizinha misteriosa interpretada por Vanessa Hudgens. Conforme se vê algum tempo, também Camille se lhe revela uma ingrata surpresa, numa boa reviravolta do texto de Jayson Rothwell.

Encampando uma premissa nada original, a do bandido de primeiro escalão que se acha vítima de um ardil de seus patrões e passa a fazer da vingança seu norte na vida, Åkerlund entrega um filme algo surpreende e ousado, muito devido à fotografia, que se empenha em fugir ao eminentemente sombrio, idealizada por Pär M. Ekberg. Em “Polar”, Mikkelsen continua o grande ator de sempre, esgueirando-se por entre o gore e a pornografia barata e gratuita, e elevando o longa à categoria de verdadeira experiência sinestésica, em que é indispensável atentar para cores, tons e luzes, mais ou menos intensos de acordo com o ponto da história que se avizinha. A participação especial de Richard Dreyfuss, num papel instigantemente revelador, malgrado pequeno para seu talento, coroa o longa não como um dos melhores desse gênero, mas decerto como um dos que mais ousaram na mistura de elementos cênicos os mais distintos.


Filme: Polar
Direção: Jonas Åkerlund
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.