Suspense imprevisível da Netflix divide opiniões, mas é uma pequena obra-prima Laura Magruder / Netflix

Suspense imprevisível da Netflix divide opiniões, mas é uma pequena obra-prima

Quanto mais original um filme, para mais longe ele se desloca do que se convencionou ter como razoável, e quanto menos sensato um filme parece, menos capaz de escapar a polêmicas ele se torna.   Narrativas com essa constituição delirante, fantasiosa, que se equilibram entre a incredulidade da farsa e a dureza do real, têm de trabalhar dobrado quanto a garantir o respeito e a confiança do espectador, que não raro também de ressente de histórias tão pouco afetas à naturalidade, malgrado tenham por matéria-prima eventos que podem se desenrolar na vida de qualquer um. Dificuldades profissionais, a doença de um parente próximo, sonhos adiados que nunca se pode saber quando voltarão, enfim, à pauta — e se de fato voltarão —, a energia desperdiçada tentando-se lidar com todo esse processo, são pedras que surgem no caminho de todos os que se atrevem a ter uma vida para chamar de sua, mas vida de verdade, não um amontoado de pressupostos do que alguém em certa ocasião alegara ser o adequado a se pensar, a se fazer, visando a um resultado previamente estipulado. Quanto menos previsível, mais palpável se torna a realidade.

O mistério em “A Última Coisa que Ele Queria” quase sai do controle e é uma tarefa dura para a diretora Dee Rees manter a trama girando sobre seu próprio eixo, ainda que flerte desabridamente com o que poderia se transformar em outros enredos. Misturando uma trama de investigação jornalística a respeito de um esquema internacional de contrabando de armas num suspense que se inclina para o fantástico, mas acaba por permanecer sem muito esforço numa condução mais naturalista, primando ora pelo verossímil, ora pelo devaneio. Tanto gosto pela experimentação definitivamente não conseguiu alcançar o coração do espectador no Festival Sundance de Cinema, quando de sua exibição ao público em 30 de janeiro de 2020, talvez por nunca permitir que a plateia relaxe e saiba quais serão os próximos lances. O roteiro de Rees, Marco Villalobos e Joan Didion (1934-2021), baseado no livro homônimo de Didion, editado no Brasil pela Record em 1999, vai de detalhe em detalhe sem nunca se fixar por muito tempo em nada, o que desemboca em duas abordagens básicas e em dois jeitos de se receber o longa. Primeiramente, se pensa que é possível avançar de uma sequência para a outra sem que se compreenda exatamente o que trio de roteiristas quis dizer, dadas as lacunas que sobram em determinados pontos da história, premissa que logo se revela falsa. Depois, no momento em que se nota que abandonar as entrelinhas do filme sem ao menos algum empenho quanto a se absorver a intenção do que é contado — e, o principal, por que é contado —, infere-se que tudo pode restar ainda mais obscuro. Portanto, toda cautela é pouco.

Ainda na introdução, fica claro que a jornalista Elena McMahon passa por algumas provações. Depois da cobertura de insurreições populares durante a Guerra Civil de El Salvador, na América Central, rechaçadas com violência pela polícia e Forcas Armadas em 1982, McMahon, um bom trabalho de Anne Hathaway, volta para os Estados Unidos com a colega Alma, de Rosie Perez, escapando do cerco das autoridades salvadorenhas, que as consideravam um reforço na atmosfera de conflagração no país, num movimento que, de tão ousado, humilha seus perseguidores. As duas voltam ao expediente tão normal quanto possível no “Atlantic Post”, enquanto McMahon sonha voltar ao país caribenho, mas dois anos depois, a carreira da protagonista está estagnada e o melhor que ela consegue é permanecer nos Estados Unidos, agora destacada para reportar as eleições presidenciais. Convalescendo de um câncer na mama, criando sozinha a filha depois de um divórcio rumoroso e às voltas com o pai, Richard, implicado no tráfico de armas — uma participação confusa de Willem Dafoe —, a situação da anti-heroína de Hathaway degringola cada vez mais, parte disso em decorrência do ressurgimento de Richard em sua vida. É por meio dele que passa a conhecer o gângster Jones, vivido por Edi Gathegi, e seu contraponto, o agente da CIA, Treat Morrison, interpretação engessada do quase sempre engessado Ben Affleck. A perdição de McMahon é pensar que pode, a despeito de seu talento, enredar homens tão poderosos, cada qual num espectro do submundo, passagem que se abre para discussões meio despropositadas sobre o lugar da mulher no mercado de trabalho, sobretudo numa atividade tão hostil. Prova cabal disso é que consegue retomar sua matéria sobre os conflitos em El Salvador, não obstante tenha de se submeter a interferência de Paul Schuster, o expatriado com quem parece começar a desenvolver uma amizade, até que a trama sofre uma virada. Dois seres machucados que têm seu destino marcado pela intolerância.


Filme: A Última Coisa que Ele Queria
Direção:
Dee Rees
Ano: 2020
Gêneros: Mistério/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.