Muitas vezes perdidos entre dois mundos, o real e o reino das aparências, somos instados a tomar parte num jogo, em que sai vencedor quem consegue o melhor diploma, o emprego mais qualificado, o carro mais moderno, a casa mais suntuosa. Somos apresentados à aventura da vida sem que tenhamos claro o que precisamos mostrar, sem saber se somos capazes de ir além do que nos permite a natureza, a Providência, o destino ou seja lá como se possa classificar. Nascemos cheios de questões muito particulares, muito íntimas, muito bem guardadas, de dúvidas, de incertezas, de dilemas existenciais, e isso já seria o suficiente para definir o homo sapiens como a espécie mais desditosa da criação. O infeliz do gênero humano tem sempre a necessidade de que o avalizem quanto ao que ele é ou deixa de ser, e essa é outra tragédia incontornável do ser gente. Para livrar-se de sua tristeza, ou, ao menos, de uma parte dela, inventamos remédios, alguns cuja natureza se revela venenosa em pouco tempo. Talvez, o mais benéfico deles, o único a verdadeiramente cumprir a função de cura e permitir ao homem alguma paz de espírito é a vida em sociedade, que por também ter seus desvios, foi se dividindo cada vez mais ao longo da história da humanidade até alcançar a configuração do que hoje se conhece por família. Esforçamo-nos para que esse projeto, quiçá o mais sublime (e complexo) na trajetória de um indivíduo, dê certo. Procuramos uma outra pessoa, às vezes desesperadamente, aquela pessoa que julgamos a mais adequada para seguir conosco por muitos anos. Com ela nos casamos, pretendemos ficar juntos eternamente, de preferência, até que a morte, a quem cabe determinar o fim, aja; com ela temos filhos, e, assim, nasce, afinal, o grande propósito de estarmos no mundo, talvez o mais nobre deles. Mas e se de um momento para o outro sentimos como se a vida se nos escapasse por entre os dedos e nos víssemos alijados dessa felicidade, como se a sorte do homem fosse mesmo vagar pela Terra a conquistar coisas de que nunca vai precisar, desalentado, sem rumo e infalivelmente só, privado justo do que o tornara, de fato, um homem, sem aquilo que passara a eleger como sua prioridade na vida e se transformara na razão mesma de ser?
O protagonista de “Sonhos Lúcidos” (2017) se vê obrigado a passar por esse drama. No introito do filme de Kim Joon-sung, Dae-ho, o pai solteiro vivido por Go Soo, é mostrado como o homem amoroso que mantém com o filho a relação mais saudável e próxima que poderia. Depois de mais um dia de trabalho, o radialista volta para casa, onde a irmã, So-hyun, interpretada por Kang Hye-jeong, toma conta do pequeno Choi Min-woo, de Kim Kang-hoon. O espectador vai tomando pé de quem Dae-ho é exatamente e do quanto ama o filho ao notar seu aborrecimento quando verifica que o menino se machucara sem gravidade enquanto brincava, mas como sofre de uma doença que torna a coagulação do sangue mais difícil, todo cuidado é pouco. Pequenas construções narrativas como essa são fundamentais a fim de o público se imbua, malgrado a sequência no parque de diversões, onde os dois passam uma tarde em que o protagonista não dá expediente na rádio, se estenda um pouco além da conta. E é precisamente nesse espaço lúdico, uma espécie de portal para outras dimensões, que Min-woo desaparece misteriosamente. Num dos constantes flashbacks do roteiro do diretor, transcorrem três anos e se fica sabendo que as investigações, paralisadas também por causa da burocracia que emperra o serviço público em qualquer parte do mundo, não avançaram. O personagem de Go Soo decide tomar a frente e averiguar por si só o que pode ter havido com a criança. Começa pela boate Sonhos Lúcidos, frequentada por tipos como Bang-seop, o detetive do veterano Sol Kyung-gu, e a partir de então tem a certeza de que o sequestro de Min-woo fora um crime de vingança, em retaliação a uma denúncia feita pelo repórter em seu programa. Dae-ho toma conhecimento de um método para solução de casos dessa natureza baseado no estado de vigília antes do sono, momento em que imagens se projetam no inconsciente, mas sobre as quais se tem relativo controle, os tais sonhos lúcidos a que o título faz menção. E essa é sua única alternativa quanto a reaver o filho.
Kim Joon-sung parte de um texto formulaico, mas eficaz, a fim de manter o suspense, oscilando entre o farsesco e o fantástico e apresentando um todo algo coeso. Mesmo a artificialidade do desfecho, dado o caráter delirante da trama, não estraga o todo, e isso garante a boa experiência de se assistir a um filme nada vulgar, ainda que previsível.
Filme: Sonhos Lúcidos
Direção: Kim Joon-sung
Ano: 2017
Gêneros: Thriller/Ficção científica
Nota: 9/10