O filme da Netflix, com Jake Gyllenhaal, feito sob medida para espectadores inteligentes Claudette Barius / Netflix

O filme da Netflix, com Jake Gyllenhaal, feito sob medida para espectadores inteligentes

Poucos são os privilegiados a poder tomar parte no que acontece de verdadeiramente relevante nos bastidores da arte no mundo, e mais especiais ainda são os que compreendem a dimensão de cada passo dado rumo a determinada tendência e por quê. Artistas egocêntricos, galeristas cobiçosos, clientes ávidos por “consumir” arte, mas sem nenhuma referência do que seja bom gosto e, por óbvio, os críticos, as bêtes noires que vampirizam o talento alheio por não conseguirem produzir nada semelhante, nas palavras um tanto ressentidas de quem enriquece às custas da ignorância de uma elite beócia, são alguns dos principais elementos por trás da compra e venda de obras de arte que, não raro, crescem muito mais devido as polêmicas que geram que à beleza de que deveriam se revestir e ecoar. Ainda que não se aprofunde nesse argumento, Dan Gilroy levanta a bola para que o público mesmo corte, surgindo daí as conclusões nada inéditas sobre no que se transformou a noção de arte e do que é ser artista a despeito de que lugar do planeta Terra se esteja durante este caótico século 21.

Em “Velvet Buzzsaw” (2019) é espantosamente genuína a máxima sobre que reza que nem tudo o que reluz é ouro, mas uma vez que a intelligentsia o chancela como tal, formam-se filas quilométricas para se garantir o primeiro quadro da mais recente exposição do artista plástico mais descolado, e Gilroy alude às artes plásticas reproduzindo um clichê de modo pensado — que reste claro que poderia se estar tratando de qualquer outro nicho desse universo: os intestinos de uma companhia de teatro, com seus célebres embates entre diretores tirânicos e atores vaidosos; o estica-e-puxa de um escritor talentoso que sempre tenta estender um pouco mais o prazo para enviar um texto, gerando a ira de editores que precisam se haver com o departamento comercial; um fotógrafo indignado com a falsa evidência de que todo mundo fotografa maravilhosamente graças à excelência das câmeras dos onipresentes celulares; e um pouco de tudo isso, elevado à enésima potência, quando se fala de televisão. E ele o faz mediante uma inteligente sátira, em que o terror fica mais pronunciado depois que já se tem por certo o caráter sociológico de sua crítica, momento em que a narrativa assume sua porção de violência explícita, sem medo de possíveis julgamentos. Este é um filme pata ser contemplado sob ângulos os mais diversos, e cada nova perspectiva oferece um jeito absolutamente revolucionário de se apreender o que se está dizendo. Isso decerto é fonte de desapontamento para muitos, ao passo que liberta outros tantos do cárcere do politicamente correto que, para não variar, aprisiona os autênticos enquanto incensa e coroa deuses de barro.

O crítico de arte e filósofo inglês Roger Scruton (1944-2020) era um ferrenho defensor da estética como um instrumento por meio do qual o homem tinha alguma chance de escapar da tentação totalitária que a natureza da política esconde. Pensador britânico de maior prestígio, cujas ideias foram mais longe desde Edmund Burke (1729-1797), Scruton certamente estaria no corner oposto do ringue ao de Morf Vandewalt, o colega da ficção encarnado por Jake Gyllenhaal. Para Vandewalt, críticos servem, antes de qualquer outra coisa, para movimentar o mercado, catapultando um artista às alturas mais inalcançáveis da glória com uma palavra escolhida a dedo para um artigo ou reduzindo esse mesmo artista a pó alguns meses depois, ancorado em conceitos questionáveis, para dizer o mínimo — e estimulados monetariamente, colocando-se as cartas todas à mesa. Provocador por natureza, o burburinho que seus textos eivados de critérios seletivos, que poupam os amigos, isto é, quem pode lhe proporcionar alguma vantagem, e são particularmente severos com os outros, simples mortais que não partilham de seu círculo, logo vira entre marchands e negociadores de arte como a agente Rhodora Haze, de Rene Russo, e sua assistente Josephina, interpretada por Zawe Ashton. Ao longo de sequências em que o personagem de Gyllenhaal exercita seu delírio, Gilroy vai pontuando a narrativa, conduzida a partir de seu próprio roteiro, com uma fauna adequadamente diversificada de personagens ligados ao mundo paralelo que escrutina. Tem o técnico de montagem Bryson, de Billy Magnussen; Gretchen, a gerente da galeria mais badalada de Los Angeles vivida por Toni Collette; Piers, o artista renomado e decadente de John Malkovich; o agente jovem e encarniçado na procura por novos talentos excelentemente personificado por Tom Sturridge; Damrish, o artista emergente do subúrbio profundo, papel de Daveed Diggs; e Coco, a secretária que aprende rápido como se joga o jogo, mais uma boa performance de Natalia Dyer. Gente descartável, uns mais, outros menos, num ambiente cruel para todos. Ou seja, uma tragédia anunciada.

Gilroy vira a chave para o horror em seu filme a partir de um evento macabro que envolve Josephina, de maneira colateral, porém determinante. Doravante, e mesmo a atmosfera de terror que predomina, um terror com toques de suspense, cuja hegemonia é ainda mais valorizada pelas cores da fotografia de Robert Elswit que, ao contrário do que se observa em quase todas as produções do gênero, nunca abandona os tons quentes e as texturas brilhantes. As mortes em “Velvet Buzzsaw” são majoritariamente cercadas de uma névoa densa de humor negro, o que mantém o público alerta. O mistério em torno desses assassinatos fecha-se em si mesmo, apresentando, por evidente, a arte como origem, tropo epifânico de Gilroy.

Muito já se disse e se escreveu a respeito da famigerada “função da arte”. Há quem diga que a função da arte é educar, preparar o homem para o futuro, instigar no homem uma consciência de fazer parte de um todo, de um organismo maior que seu próprio corpo, que sua própria família, seu próprio círculo de amigos, sua cidade, seu país, quem sabe esperando que deixe de caber no próprio planeta. Por outro lado, muitos defendem que a função única da arte é precisamente essa, ser arte. A arte pela arte pode ser arte ao quadrado e, em muitos casos, é muito mais producente quanto a fazer girar a roda da evolução. Contudo, a permanência e a perpetuação de figuras como Morf Vandewalt nesse meio é um grande perigo, justamente por misturar num mesmo balaio o que é dotado de valor ao que tem apenas preço. Destaque no Festival Sundance de Cinema, em 2019, “Velvet Buzzsaw”, barulhento, poluído, calculadamente falto de ordem, é a síntese perfeita do que vem se tornando a arte do nosso tempo, cada vez mais indigente e fabricando milionários Damien Hirsts em escala industrial.


Filme: Velvet Buzzsaw
Direção: Dan Gilroy
Ano: 2019
Gêneros: Terror/Drama
Nota: 9/10