Perturbador e aclamado pela crítica, filme que foi banido de cinemas, acaba de chegar à Netflix Nick Wall / Paramount Pictures

Perturbador e aclamado pela crítica, filme que foi banido de cinemas, acaba de chegar à Netflix

A questão racial está longe de ser um problema específico do Brasil ou dos Estados Unidos. Números oficiais apontam que o racismo no Reino Unido tem estado sob controle, e os presos britânicos não-brancos, por exemplo, estão longe de atingir a vergonhosa marca de 1,3 milhão custodiados pelo Estado. A população prisional inglesa gira pelos 86.000 presos, e se tomarmos o argumento de que esse contingente era 50% menor há trinta anos, a comparação torna-se ridícula, ao passo que se abre para uma nova abordagem. O que terá acontecido para que a taxa de encarcerados no Reino Unido aumentasse tanto desde o princípio dos anos 1990, se a economia do país sofreu baques significativos, na Inglaterra sobretudo? A ampla defesa, preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, originalmente publicada em 1948 e filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799, é garantida a todos, ou, como se observa em todo o mundo, há iguais mais iguais que os outros? Pouco se conhece acerca da disposição das cadeias britânicas, e ainda menos do ordenamento jurídico do Reino Unido, ao contrário do que acontece em sua ex-colônia mais famosa e mais próspera. O documentário “A 13ª Emenda” (2016), dirigido por Ava DuVernay, ajuda o público leigo a entender e se familiarizar com detalhes das leis americanas, segundo DuVernay, intencionalmente falho e propenso a atormentar e incriminar cidadãos pretos. Na terra da rainha, nem isso.

Quando de sua estreia, em 22 de novembro de 2019, “Blue Story” logo ficou falado, não pela força da história, mas pela comoção das reações inflamadas que despertou, sendo inclusive acusado de, haja ironia!, racismo, comportamento de quem não conhece nada da verdadeira situação dos negros pobres na Inglaterra, empurrados para a marginalidade nos subúrbios de Londres, como também se verifica em Paris ou Berlim. Tachar o filme de Andrew Onwubolu, o Rapman, de preconceituoso é bem característico dos negacionistas que nunca mais voltarão as suas catacumbas desde que puderam usurpar um protagonismo que jamais deveriam ter alcançado no auge da pandemia de covid-19, em meados de 2020. Como se vê, em 2019 já punham o bloco na rua, vampirizando a questão racial. Amanhã, ninguém sabe do que podem ser capazes.

Retrato contundente das gangues de Peckham, bairro do sul de Londres arruinado pela violência de grupos de jovens delinquentes sem constituição formal, mais ou menos orgânicos, e com objetivos muito bem definidos, que se chocam com os bandos de Deptford, outro distrito da capital inglesa. Familiarizado ao assunto, Rapman, ex-morador de Deptford, centra seu filme sobre Timmy e Marco, figuras quase antagônicas que absorvem a realidade das ruas cada qual a seu modo. Enquanto Timmy, vivido por Stephen Odubola, a melhor performance do longa, passa ao largo da influência dos bandidos, ávidos por expandir o tráfico de drogas nos territórios onde atuam, Marco, interpretado por Micheal Ward, parece predestinado a se transformar num dos chefões da boca, muito por causa da coação do irmão mais velho, Madder, de Junior Afolabi Salokun. Malgrado partilhem de uma origem comum, a maneira como Timmy e Marco escolhem conduzir suas vidas é o mote central de “Blue Story”, e a história triste do título, por óbvio, tem referência direta com o cotidiano dos dois, permanentemente cercados pelas drogas e todas as muitas questões que suscitam. Algumas sequências depois que os dois personagens são apresentados, o roteiro do diretor já começa os preparativos para a reviravolta da trama, que toma corpo devido à necessidade que os criminosos de um lado têm de subjugar os rivais. Desencadeia-se um movimento de ação e reação incontrolável, baseado em modelos de retaliação motivados pela conquista de territórios, o oxigênio de que o tráfico de entorpecentes precisa a fim de atravessar os anos e nunca se extinguir.

O componente melodramático do enredo é, por evidente, uma chaga da contemporaneidade, mas que remonta ao teatro clássico, uma mistura original e estimulante de tragédia grega e Shakespeare, mediante a morte de alguém por um expediente violento, mas sem que o amor lhe sirva de pano de fundo. Conhecido por vídeos caseiros no YouTube, Rapman se mostra um cineasta de talento raro, instintivamente perspicaz, atento a minúcias que passariam ao largo do olhar de diretores mais experientes, e sua história pessoal contou muito para tal. Sem dúvida um trabalho de gênio, “Blue Story” ainda serve como um grito de alerta para o que continua a acontecer em porções obscuras de megalópoles europeias. Em especial entre gente que não desperta o interesse nem do poder público nem do cinema. Pelo menos não como deveria.


Filme: Blue Story
Direção: Andrew Onwubolu
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.