O filme, na Netflix, que um espetáculo para os olhos e um dos melhores suspenses do cinema contemporâneo Divulgação / 20th Century Studios

O filme, na Netflix, que um espetáculo para os olhos e um dos melhores suspenses do cinema contemporâneo

“A Cura” é um espetáculo para os olhos. Desabridamente gótico, mas moderno, como se, mesmo em cores, desse a impressão de ser um dos trabalhos fundamentais de Hollywood, da Era de Ouro ou de antes, em que o preto-e-branco era recurso imprescindível a fim de contar aquela história, o filme de Gore Verbinski abusa de composições pálidas, como se os cinzas, o verde-musgo e o azul-celeste da fotografia de Bojan Bazelli dessem forma à atmosfera de sonho que é a essência mesma da história. Os figurinos clássicos, igualmente voltados a valorização do passado, de um passado inatingível, aludindo à Renascença, quiçá ao medievo, saídos das mãos talentosas de Jenny Beavan, coroam uma seleção de escolhas estéticas sofisticadas, que nada deixam a dever a David Fincher ou David Lynch, superando-os em alguns momentos. Cônscio de que cinema é uma manifestação artística solidamente constituída na afirmação e defesa de um fetiche, Verbinski dispõe de toda a sua sensibilidade a fim de capturar o espectador compreendendo seus desejos mais secretos, sua cosmovisão mais obscura. É difícil não se flagrar embasbacado por um filme como este.

Mesmo a enxurrada de críticas tolas, a exemplo das que argumentam que “A Cura” é longo demais em suas quase duas horas e meia de projeção, e que justamente por isso fica pelo caminho, sem conseguir entregar tudo quanto promete perdem o sentido a partir do momento em que se admite que o diretor quis fazer um filme que se passasse num tempo indeterminado — e há que se admiti-lo. Contudo, de nada adiantaria tanto empenho e tanta beleza se o elenco não fosse capaz de capitalizar tudo o que Verbinski queria dizer. Dane DeHaan usa de sua figura aristocrática, do típico WASP (o americano branco, anglo-saxão e protestante, na sigla em inglês, ou seja, padrão), para dar vida a Lockhart, o sujeito ambicioso e nada afeto a perfumarias como sensibilidade e ética, muito menos quando se trata de subir na vida, que viaja da Costa Leste dos Estados Unidos para a Suíça a fim de resgatar Pembroke, o executivo-chefe da empresa em que trabalha, sumido depois de se internar numa clínica de repouso (ou de bem-estar, como no título em inglês), personagem de Harry Groener, administrada pelo médico alemão Heinrich Volmer de Jason Isaacs. DeHaan é a chave para se entender boa parte do mistério que borbulha no roteiro, coescrito por Verbinski e Justin Haythe. Nenhuma de suas muitas expressões, ora tomadas de uma letargia que o paralisa, ora adornadas pelo rosto angelical, e que muitas vezes esconde vontades impublicáveis, é gratuita. O aspecto anti-heroico do personagem, que se apropria da condição de salvador de Pembroke ao mesmo tempo em que começa a sentir na pele as consequências por ter se metido com gente muito mais poderosa que seu patrão, é decalcado em Hannah, seu contraponto. Enquanto ele luta para tirar o personagem de Groener dos domínios dos médicos e enfermeiros da clínica, revelados como demônios de branco à medida que a história toma corpo — e agora para achar um meio de também ele próprio escapar desse santuário de fancaria —, Hannah, completamente idiotizada, aceita seu destino placidamente, isto é, não se importa em continuar tendo sua energia e sua vitalidade sugadas, sabe-se lá com que propósito. A contracena de DeHaan e Mia Goth, cujos personagens se complementam, como se imbuídos da missão de despertar um no outro aquilo lhe falta e, assim, se salvarem, é o ponto alto do longa, pleno de tropos relevantes.

Erguida num terreno onde antes havia um castelo habitado por um nobre obcecado com a ideia de pureza da linhagem — e a trama se passar na Alemanha não é mera coincidência —, a clínica congrega todos os elementos do terror inteligente, sem nunca prescindir da narrativa onírica, desinteressada e revigorante, como nos contos de Edgar Allan Poe (1809-1849), em especial “O Barril de Amontillado”, que ocupou as páginas da revista feminina “Godey’s Lady’s Book” em novembro de 1846.

“A Cura” é um filme que transcende limites estético-narrativos. O desfecho, encerramento de um ciclo em que Lockhart não completa sua missão, mas descobre, enfim, algum sentido na vida, é apoteótico, com a alternância de cenas de franco êxtase e a melancolia sempre a pairar sob os demais personagens. Talvez o protagonista de Dane DeHaan não tarde a voltar a ser o que sempre fora, mas de ilusão, claro, também se vive.


Filme: A Cura
Direção: Gore Verbinski
Ano: 2016
Gêneros: Suspense/Drama/Fantasia
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.