Quão mais fácil seria viver se as pessoas fossem ou apenas boas ou apenas más. Mais fácil, mas também muito mais tedioso. Decerto o cinema perderia grandes oportunidades quanto a registrar a passagem desses tipos, escorregadios, nada óbvios, perigosamente atrapalhados e, o principal, encantadores, no sentido mais metafísico do termo, naquele que respeita a valer-se de suas qualidades mais viscerais a fim de tocar alguém em seus pontos mais vulneráveis, não pela simples glória de seduzir, mas para sobreviver mesmo. Ainda que fosse possível optar entre ser completamente bom ou completamente mau, dá para se cravar o palpite de que a grande maioria de nós iria preferir deixar que o cenário se nos apresentasse para ver como se comportar. Sem maldade nenhuma.
O diretor italiano Andrea Di Stefano usa esse argumento para traçar o perfil de Pete Koslow, o protagonista de “O Informante” (2019). Koslow, o boa-praça típico vivido por Joel Kinnaman, tem uma certa dificuldade em se manter longe de encrenca. Fora da cadeia há pouco tempo, o espectador não consegue discernir muito bem se o ex-militar mereceu ou não a soltura, conclusão a que se chega porque o FBI, a Polícia Federal americana, não larga do pé dele. Visto como um sujeito desembaraçado, capaz de entrar na água e não se molhar, a liberdade condicional que o possibilitou voltar para o convívio com a mulher, Sofia — vivida por uma pálida Ana de Armas, num desempenho muito inferior ao aclamado “Águas Profundas” (2022), de Adrian Lyne — e a filha, Koslow e a opção número zero dos federais para dar continuidade à operação que visa a desmantelar a rede de tráfico de drogas que abastece boa parte dos Estados Unidos. As cores borradas da personalidade de Koslow começam a aparecer aí. O personagem de Kinnaman aceita de tão bom grado a incumbência da polícia — o que o torna, a um só tempo, um colaborador das autoridades, um patrono das instituições, mas também um criminoso comum, que se verá obrigado a lidar com outros criminosos comuns — que talvez esteja mesmo interessado em fazer o temperamento diplomático trabalhar a seu favor em dobro, beneficiando-se dos lucros do tráfico, enquanto goza de prestígio com os homens da lei, em alguma proporção reféns dessas suas aptidões.
Equilibrando-se entre esses dois universos sem despertar suspeitas de parte a parte, Koslow passa incólume pela maior prova de fogo de sua vida, e até consegue alguma projeção junto aos superiores, que lhe permitem galgar postos de chefia no bando. Vai se integrando ao lado B do sistema, até que junta as evidências necessárias para incriminar Klimek. O General, como também é conhecido, mandachuva do submundo interpretado por Eugene Lipinski, estava prestes a ser encurralado, mas a primeira grande reviravolta do roteiro de Di Stefano, Matt Cook e Rowan Joffé, indiretamente ligada a Koslow, põe tudo a perder. A entrada em cena de Common, na pele do detetive Grens, responsável por averiguar o ocorrido — momento em que a trama tende a descarrilhar, dada a velocidade com que os fatos se sucedem —, implica na súbita volta de Koslow à prisão, sem que o público, outra vez, seja devidamente guarnecido de informações a fim de saber se há ou não motivo para tal. O talento de Rosamund Pike evita maiores tragédias. Wilcox, o tipo igualmente dúbio encarnado por Pike, contrabalança à perfeição as malsucedidas aventuras do trio de roteiristas, encampadas pelo diretor, claro. Dando forma à agente insegura, mas presunçosa, que não se dá por vencida até que tudo se esclareça — malgrado não saiba exatamente a quem deve acusar, e com isso, a simpatia da audiência pelo anti-herói de Kinnaman ganha generosos pontos —, Wilcox, na verdade, é a idiota útil do chefe, Montgomery, de um Clive Owen dia a dia mais inexpressivo.
Aproximando-se a reta final, Di Stefano retoma o leme suscitando com mais vigor a questão central de seu filme: a curtíssima distância que pode haver (e acaba por haver mesmo) entre criminosos, aqueles a quem o Estado atribui a tarefa de combatê-los e a promiscuidade dessa relação. Facções que se trucidam entre si, carcereiros dispostos a fazer vista grossa para ilegalidades — quando não passam para o lado de lá sem maiores crises de consciência —, burocratas apáticos, insensíveis, omissos, existe um pouco de tudo isso num enredo que, mesmo bem longe da perfeição, acerta ao fazer a ação transitar sem medo de patrulha de uma para outra abordagem. Alvo de achaques incessantes, dos dois segmentos, o informante de Joel Kinnaman tem muito mais fibra moral que os candidatos a mocinhos do longa, que caminham a passos largos rumo à letargia à medida que os conflitos se resolvem, como se lhes restasse apenas o espectro. Inquebrantável até o fim, Pete Koslow, ao contrário se conserva íntegro, ainda que sofrendo os trancos que quem acompanha sua saga com atenção tem certeza de que ele é capaz de suportar.
Andrea Di Stefano escolhe terminar “O Informante” nessa atmosfera, favorecendo a ação, progressivamente mais forte, sobre a tensão banal, com direito a uma tentativa de fuga que não chega a virar a chave do suspense de todo, mas torna a narrativa menos obscura e menos estanque. Em poucas vezes na história do cinema, desejou-se tanto que um thriller se revelasse. Para o bem e para o mal.
Filme: O Informante
Direção: Andrea Di Stefano
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Ação
Nota: 8/10