O filme da Netflix que não quer te convencer de nada, mas vai te fisgar e tirar seu fôlego até a última cena Marcos Cruz / Netflix

O filme da Netflix que não quer te convencer de nada, mas vai te fisgar e tirar seu fôlego até a última cena

Uma das grandes magias de Hollywood é entender a força por trás da narrativa de homens comuns que, por alguma razão, tornam-se heróis e a partir desse salto realizar filmes memoráveis. Talvez o último grande filme de messias possíveis tenha sido “Sully: O Herói do Rio Hudson” (2016), dirigido pelo incomparável Clint Eastwood, sobre Chesley Sullenberger, o Sully, piloto da aviação civil que em 2009 pousa um avião em pane nas águas do rio que corta Nova York. Misturando elementos que vão da exploração anímica do protagonista, apresentando ao público de que espécie de homem está tentando traçar um perfil, enquanto também perpassa características pouco nítidas dos lugares por onde ele tem passado, Eastwood oferece ao espectador um panorama vasto sobre alguém que não poderia ter agido de maneira diferente mesmo. E que ninguém pense que o capitão Sullenberger se tornou unanimidade absoluta, incensado ao redor do mundo à simples menção ao seu nome. Como sói acontecer com os heróis genuínos, o piloto enfrentou uma insana caça as bruxas, por, além de ressuscitado pela enésima vez problemas das aeronaves e das companhias aéreas, que os negligenciam, ser acusado de mórbido exibicionismo, ou seja, Sully teria se valido de circunstâncias especialmente dramáticas, que poderiam ter degringolado numa catástrofe sem precedentes, para se jactar de sua perícia no comando de um veículo de dimensões quase inestimáveis que carrega centena e meia de passageiros e ameaça ir a pique por motivos que ninguém sabe esclarecer, e pior: na cabeça perversa dessas pessoas, o próprio Sully teria dado azo ao episódio.

Heróis passam por situações como essas, e mais que de incompreensão e má vontade, são vítimas da maledicência de quem nunca teria arrojo, muito menos bravura para empreender algo sequer parecido. Esse destemor, aliado a uma ousadia que, por mais ancorada no ímpeto que se pretenda, identifica os claros limites éticos imbuídos em cada providência que pensa em tomar, é parte indissociável dos heróis, que muito maior medida que os simples mortais, se deparam com dilemas que botam à prova sua capacidade de reagir com rapidez a estímulos exógenos a uma certa linha de comportamento e sua fibra moral. Da mesma forma que Eastwood, o diretor Gideon Raff se esmera por compor um painel de seus personagens que se estenda para além da vã humanidade em “Missão no Mar Vermelho”, lançado em 2019, três após o belo trabalho do veterano. Raff é, sem dúvida, competente em demonstrar o valor de sua história, muito mais rica em conflitos que uma infinidade de longas de não-ficção sobre ataques de criaturas monstruosas, sequências lideradas por magos do bem que combatem magos do mal ou mesmo os que aludem à natureza mítica de um personagem. O filme capta a necessidade de enaltecer a façanha retratada, sem contudo jamais abdicar do que pode haver de mais humano da trama. O que, não por acaso, a torna ainda mais fantástica.

O filme relembra a história real de um grupo de agentes do Mossad, o serviço secreto israelense, que livrou da subjugação do governo do Sudão centenas de refugiados judeus etíopes no começo da década de 1980. Já no introito, Raff faz questão de cristalizar o aspecto metafísico de seu roteiro, apostando no melodrama: os etíopes fogem do cerco sudanês, em que homens fortemente armados os perseguem, e se abrigam em caminhões estacionados a sua volta, que, como se vai saber em seguida, foram dispostos pelos agentes de Israel. Algo quase sai do controle durante a operação, mas Ari Levinson consegue levar sua missão a bom termo. Chris Evans manifesta esse vigor cênico até o fim, evidenciando que seu personagem é o eixo em torno do qual o enredo há de correr. Centram-se sobre sua figura bonachona muitos outros conflitos em que tragédias parecem cada vez mais inescapáveis, mas resultam em cenas de tensão que o público pode apreciar melhor em admitindo sua condição um grau acima do lugar ocupado pelos colegas.

Os planos de Ari de permanecer no Sudão e dar continuidade à assistência aos refugiados, vítimas de ultrajes cada vez mais desonrosos, têm de ser abandonados, mas o protagonista, claro, não está convencendo a largar tudo e voltar a Israel sabendo que ainda há vários cidadãos judeus por serem salvos, não importa se nascidos em outro solo que não o da Terra Santa, inclusive Kebede Bimro, um dos líderes dos etíopes, vivido por Michael K. Williams. Certo da necessidade de um ter plano muito bem detalhado na manga se quiser persuadir seus superiores, o lado fantasioso do longa começa a se deixar antever aqui, inverossímil como muitos dos eventos reais que o cinema registra. Sem maiores elaborações narrativas, Raff saca da cartola o argumento central de seu filme, a compra de um resort desativado no litoral do Sudão como fachada para receber e expatriar os últimos reféns detidos na Etiópia. Para tanto, vai contar com a retaguarda de Sammy Navon, papel de Alessandro Nivola; Rachel Reiter, vivida por Haley Bennett; Jake Wolf, interpretado por Michiel Huisman; e Max Rose, de Alex Hassell. Walton Bowen e Ethan Levin, os oficiais seniores de Greg Kinnear e Ben Kingsley, respectivamente, deveriam se prestar ao papel de superego de Ari, mas ainda que estejam cientes da insubordinação de seus quadros, fomentada por ele, por mais que reconheçam que ele está fora de controle, lhe depositam um voto de confiança. Enquanto isso, o hotel, vira sensação nas imediações de Cartum, atraindo caravanas de turistas e fazendo com que Ari e seus companheiros tenham de administrar o negócio como se aquela fosse mesmo a nova vida que procuravam. É essa opção por assumir o absurdo da história que faz de “Missão no Mar Vermelho” um filme, no mínimo, curioso.


Filme: Missão no Mar Vermelho
Direção:
Gideon Raff
Ano:
2019
Gêneros:
Espionagem/Ação
Nota:
8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.