Magistral e dolorido, filme escondido na biblioteca da Netflix vai te emocionar até o último segundo Divulgação / BKM Film

Magistral e dolorido, filme escondido na biblioteca da Netflix vai te emocionar até o último segundo

A alma humana, sempre ávida por se livrar de seus casulos, voa da maneira que consegue. “The Butterfly’s Dream” (2013), roteirizado e dirigido por Yilmaz Erdogan, que também faz uma ponta na história, figura como uma das produções mais caras da Turquia. Inspirando-se na trajetória dos poetas Muzaffer Tayyip Uslu (1922-1946) e Rustu Onur (1920-1942), que morreram de tuberculose sem nunca terem cruzado as fronteiras de seu país — sequer puderam deixar a província em que nasceram —, o trabalho de Erdogan presta um grande serviço quanto a desvendar os quase insondáveis mistérios que circundam a milenar cultura turca. Valendo-se de elementos que se configuram à luz de uma lenda, dotada de toda a sabedoria que os povos orientais prudentemente mantêm a salvo do resto do mundo, “The Butterfly’s Dream” se ambienta nas paisagens de cartão postal da Turquia, priorizando na narrativa seu caráter estritamente poético até o terceiro terço do filme, quando o enredo começa a enveredar para a lugubridade que a doença, cada vez mais agressiva, representa para Uslu e Onur.

O roteiro, que se concentra na amizade entre os dois sonhadores profissionais; a juventude que se corrompe devido à força de uma enfermidade onipresente, para a qual não havia cura; o amor, correspondido e platônico, atinge qualquer natureza de público, independentemente de quando se assista ao filme. “The Butterfly’s Dream” decerto foi muito mais longe do que o próprio Yilmaz Erdogan supunha, nem tanto como “Winter Sleep” (2015), ganhador da Palma de Ouro do 67º Festival de Cannes. Comparado aos contos do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), o filme de Nuri Bilge Ceylan conta a história de Aydin, um homem rico, que aluga casas e tem um hotel na Capadócia, incapaz de se compadecer do sofrimento alheio, narrativa diametralmente oposta à do filme de Erdogan. “The Butterfly’s Dream”, representante da Turquia no Oscar 2014, gestado em banho-maria pelo diretor, já conhecido por “Vizontele” (2001), é um libelo em defesa da doçura e da polidez. Erdogan, que também se dedica à poesia, entrega um verdadeiro tratado antropológico sobre a arte de fazer versos em seu país, se empenhando por resgatar a memória de seus protagonistas e sua importância para as belas letras mais de 70 anos após a morte deles — e como sempre sói acontecer, na esteira de tamanha exposição, os livros de Uslu e Onur foram catapultados do ostracismo para as listas de best-sellers depois que o filme estreou no Egito.

Na Turquia do pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cuja economia leva anos para se recompor, os personagens centrais reclamam da pouca comida, não têm nenhum dinheiro, e, mesmo tuberculosos, não baixam a guarda e vivem como se estivessem em férias eternas — brincam, saltam, passeiam, felizes, apesar de esfarrapados. Os enfrentamentos armados ainda se restringiam apenas à Europa, todavia a vida não anda fácil em Zonguldak, cidadezinha banhada pelo Mar Negro. O governo do general Mustafa İsmet İnönü (1884-1973), braço-direito do marechal Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938) — principal difusor da ideia de nação entre o povo turco, fundador da República da Turquia e seu primeiro presidente —, reprime opositores com violência. Só os alinhados ao regime de İnönü conseguem empregos dignos, na kafkiana burocracia de então, o que lança Uslu e Onur num estilo de vida comparável à mendicância. Não prescindem de continuar a escrever, até porque não sabem fazer outra coisa, não levam a sério as ameaças dos poderosos e percebem sua verve renovada ao conhecerem Suzan, aluna de um colégio para os filhos da elite de Istambul. À medida que os vértices desse triângulo se estreitam, os dois se descobrem apaixonados pela mesma garota e decidem resolver a contenda da melhor forma: vão compor cada um o poema com que presenteiam Suzan, a quem cabe dar o veredicto sobre qual o melhor. O autor preterido deve admitir a derrota e deixar o caminho livre para o adversário.

A tuberculose, para a qual já havia vacina desde 1921, se constituía em verdadeira peste ao longo da Segunda Guerra, propagando-se sem clemência pelos ambientes úmidos e pouco ventilados das minas de carvão, nas quais todo cidadão do sexo masculino — excetuando-se os já enfermos, os muito velhos e os apaniguados da autocracia de İnönü — deveria trabalhar. O estado de saúde de Onur se deteriora e ele procura atendimento no sanatório de uma ilha distante. Lá, se interessa por uma moça com moléstia igual a dele, o que seria a grande oportunidade para que Ulur entrasse de vez na vida de Suzan. Mas ele também adoece gravemente.

Sempre amparados por Behçet Necatigil (1916-1979), então professor de Onur e Ulur, vivido pelo próprio Erdogan, os amigos vivenciam seus últimos momentos de júbilo ao saberem que seus poemas foram, enfim, publicados pela revista literária local. Com os pulmões já irremediavelmente tomados pela infecção, Rustu Onur morre aos 22 anos, em 1942; quatro anos depois, a morte prematura também colhe Muzaffer Tayyip Uslu aos 24 anos. Behçet Necatigil foi um dos principais expoentes da poesia turca moderna.

Os elementos subjetivos de composição, a exemplo da trilha sonora de Rahman Altin, têm o lirismo que o filme pede, e as categorias mais técnicas, como montagem, fotografia, efeitos visuais e sonorização não ficam para trás. “The Butterfly’s Dream” nos conduz a outras dimensões. A boa arte permite que até as borboletas sonhem.


Filme: The Butterfly’s Dream
Direção: Yilmaz Erdogan
Ano: 2013
Gênero: Drama/Romance
Nota: 10/10