A história intensa de sobrevivência, na Netflix, que vai tirar seu fôlego do início ao fim

A história intensa de sobrevivência, na Netflix, que vai tirar seu fôlego do início ao fim

“No Coração do Mar” pode ser tomado sob muitas perspectivas. O longa de Ron Howard, lançado em 2013, remonta ao livro-reportagem “No Coração do Mar: A Tragédia do Navio Baleeiro Essex” (2000), de Nathaniel Philbrick, que por seu turno inspirou-se em Herman Mellville (1819-1891), autor de “Moby Dick”, publicado em 1851 e um dos romances mais lidos de todos os tempos. Tudo isso passa pela ruína de um navio baleeiro, destroçado pela cachalote rara que habitava o Atlântico Sul. Prestando-se ao papel de ponte entre a natureza factual do enredo e toda a fantasia que embala os bastidores da trama, o filme se equilibra bem entre essas duas vertentes, a da ficção e a da não-ficção, apresentando Melville ainda antes da redação final de “Moby Dick”, entrevistando um dos oito tripulantes do navio que sobreviveram décadas depois, malgrado o escritor nunca tenha se deslocado até Nantucket, em Massachusetts, de cujo porto a embarcação zarpou — eram vinte homens inicialmente. Há, por óbvio, o componente socioeconômico, que enfatiza a ascensão da indústria do século 19 em torno do óleo de baleia, que estava para a rudimentar economia de duzentos anos atrás como o petróleo para a civilização de hoje, mas decerto o que mais salta aos olhos em “No Coração do Mar” é o recorte dramático, mediante o qual Howard explicita a agonia dos marinheiros, dominados pela incerteza depois da perda do navio, padecendo ainda mais graças à vaidade do capitão George Pollard, o aristocrata que chega ao posto contando com a influência do sobrenome, de Benjamin Walker, sempre às turras com o imediato Owen Chase, interpretado por Chris Hemsworth, mais qualificado, contudo meio rebelde. É essa tensão entre os dois, que pincela todo o longa com variações de intensidade muito precisas, que acaba se fazendo imprescindível a fim de se absorver o genuíno espírito do filme, de narrativa caudalosa, repleta de nuances e que exige algum empenho do espectador. Do contrário, detalhes nas expressões de um e outro — principalmente no que diz respeito à performance de Hemsworth, certamente um de seus melhores trabalhos — restam perdidos e a riqueza cênica do roteiro, lavra de seis autores (!), acaba por ficar comprometida.

Essa profusão de núcleos prejudica um tanto o filme, até porque as cenas do navio não contam com atores experientes; a dada altura, “No Coração do Mar” parece mais um concurso de calouros, organizado para atestar qual dos candidatos ali têm mais prestígio junto à audiência, obedecendo a quesitos como beleza, simpatia, bom humor e, lá no fim, talento. Fica evidente a dedicação do diretor quanto a imprimir a marca de seu trabalho, inconfundível em “Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo” (1995), “Uma Mente Brilhante” (2001), Rush — No Limite da Emoção (2013) ou “Era Uma Vez Um Sonho” (2020) — Ron Howard é um dos realizadores mais prolíficos de Hollywood, capaz de estrear mais de um filme por ano, conforme se vê —, mas o descompasso do elenco, salvo exceções num ou noutro trecho, quase leva o barco a fazer água.  Em ocasiões assim, fica difícil qualquer manobra técnica capaz de botar um filme no rumo, mas Howard tem mão firme e controla o leme, evitando que seu trabalho se estilhace em mil contra o primeiro rochedo. A grande dificuldade que se avulta é conseguir manter o todo coeso, verdadeira empreitada num filme em que as sequências de ação se amontoam umas sobre as outras, de propósito, justamente para que se tenha óbvio o caos da vida a bordo, com uma multidão de homens ganhando a vida da pior forma que podem. “No Coração do Mar” é um ajuntamento de pequenos filmes, reunidos com o auxílio de recursos técnicos cartesianamente exatos, a exemplo dos enquadramentos e da computação gráfica.

É um desperdício a maneira como Howard escolhe frisar a relevância histórica de “Moby Dick”, com o Herman Melville de Ben Whishaw registrando as memórias do marinheiro Thomas Nickerson, vivido por Brendan Gleeson na fase madura e Tom Holland nas passagens filmadas no navio; isso posto, há que se enaltecer exatamente a graça dessas sequências, até a reviravolta que dá azo aos desdobramentos filosóficos da trama, quando o diretor, acertadamente, esquece o que seu filme fora até então e toma o todo pela parte, optando por não retratar de modo categórico o expediente usado pelos tripulantes a fim de tentar sobreviver. As cenas na ilha em que conseguem se refugiar até que se restabeleçam o bastante e tornem ao mar até serem resgatados também valem uma apreciação mais detida, malgrado permaneça uma certa confusão geográfica sobre de que lado da América do Sul estão, afinal. 

Em que pese o elenco pouco afinado, que faz transcender para a tela a guerra de egos entre os dois homens mais importantes na hierarquia do Essex, e deslizes cronológicos — o personagem de Holland em adulto deveria ser mais moço que Gleeson (ou aparentá-lo), o filme é um belo exercício cinematográfico, mérito do diretor de fotografia Anthony Dod Mantle. Cillian Murphy dá a retaguarda artística necessária que falta aos dois protagonistas, mesmo que quase não apareça, na réplica em escala real do baleeiro, o que faz a diferença em tempos de tantas intervenções da máquina — mesmo entre as cachalotes, em boa parte, por evidente, filhas da equipe de efeitos visuais, há enormes marionetes, o que por si só é um requinte. É uma pena que “No Coração do Mar” derive tanto.


Filme: No Coração do Mar
Direção: Ron Howard
Ano: 2013
Gênero: Ação/Drama
Nota: 7/10