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Musicais devem ser analisados com atenção redobrada. Capaz de provocar paixões arrebatadoras e incondicionais ou, pelo contrário, despertar um tédio invencível e preconceitos muitas vezes infundados, a mistura de texto dito e cantado deve primar pelo bom senso, sob pena de se chegar ao fim da história e não se ter ideia sobre o que está se passando na tela. Uma vez que se observa esse preceito, fundamental, a força do enredo se impõe e a mágica acontece.

A verdade é que os musicais tocam um lado muito íntimo em nós. Meu primeiro contato com o fantástico mundo dos musicais se deu ouvindo a finada Brasília Super Rádio FM. No vasto cardápio da rádio, de muito bom gosto, se destacava “Musicais Maravilhosos”, e todos os sábados, entre duas e três da tarde, eu tinha como compromisso inarredável sintonizar em 89 megahertz e nove décimos, como dizia por extenso a locutora, e me deliciar ao longo de sessenta minutos de boa música, em que eram apresentadas as canções levadas pelos atores-cantores, enquanto minha imaginação fazia o resto. Eu construía os cenários, imaginava os figurinos, inventava as caras dos intérpretes, ansiando por assistir àquela maravilha de perto. Os musicais da Brasília Super Rádio FM fizeram de mim um sonhador. Foi por meio deles que eu, que só conseguia me encontrar em Machado, Dostoiévski, Proust, me vi encantado por saber que havia gente de carne e osso, do meu tempo, preocupada em não permitir que se apagasse a vontade de se celebrar o amor, e fazer dessa celebração uma arte, e dessa arte, por conseguinte, a defesa de que a vida vale a pena.

Um dos aspectos que mais valorizo em “La La Land: Cantando Estações” (2016), de Damien Chazelle, é que a lembrança de Ginger Rogers (1911-1995) e Fred Astaire (1899-1987) se mantém acesa, sem que isso obrigue o filme a abrir mão de sua própria identidade. Ou seja, Chazelle imprime em “La La Land” o movimento, o ritmo, a graça dos veteranos, sem descuidar de manter a atmosfera contemporânea do roteiro, valorizando em igual medida a dança e a mensagem transmitida nos diálogos e nas letras das músicas. O diretor enxerga a diferença que detalhes a exemplo de uma coreografia bem ensaiada e o som, razão primeira de musical, fazem para que melhor se absorva o que é levado à tela. História de amor e ilusões, “La La Land” mostra que o mundo — e Los Angeles, sobretudo — é feito de gente que sonha. E que, em muitos casos, sonhos só se concretizam sabendo-se que há por trás um grande amor preparado para subir ao palco nas guinadas que a vida dá.

Numa introdução propositalmente confusa, em que um congestionamento monstruoso é razão para que os motoristas deixem seus carros e comecem a cantar “Another Day of Sun”, ode a resiliência salvadora de jovens aspirantes a artistas em que Chazelle aproveita para tecer suas sutilíssimas impressões acerca da farsa que o sonho hollywoodiano pode encerrar. Suas tomadas, extensas e sem cortes, expõem a coreografia sem pressa, com dançarinos evoluindo de forma quase didática, como se quisessem ensinar o espectador e incluí-lo no número. Nesse momento, somos apresentados ao pianista Sebastian Wilder e à atriz Mia. À medida que se conhecem, os personagens de Ryan Gosling e Emma Stone, na típica dinâmica de atração e repulsa — ainda mais forte nos musicais —, atingem um ao outro em seu ponto mais sensível, o que, por óbvio, vai terminar em romance, e num belo romance, dada a afinidade entre os atores, que fazem Sebastian e Mia se complementarem em seus anseios e em suas falhas.

Registrando um pôr do sol verdadeiramente cinematográfico, Chazelle eterniza um dos momentos mais líricos do cinema recente, com os personagens centrais descobrindo que têm muito mais semelhanças que diferenças. A atriz não aguenta mais participar de audições que nunca dão em nada, enquanto o pianista não concorda em ter de se submeter às invencionices cafonas do mercado e planeja abrir seu próprio clube, mas, enquanto não consegue, precisa se conformar em tocar os grandes sucessos do jazz em apresentações bissextas para turistas grosseiros. A forma que encontram para desanuviar a tensão de ter de ganhar a vida ao passo que não realizam seus sonhos é festejando o milagre de terem se cruzado em cenas em que resta indiscutível o apuro estético de Chazelle, que realça o sentimento que se apossa de Sebastian e Mia pela precisão e pelo encanto com que dançam juntos. Gosling e Stone nunca haviam dançado e cantado profissionalmente antes — sobretudo Gosling, célebre ao dar vida a tipos marginais e um tom abaixo do resto da humanidade, como em “Drive” (2011), dirigido por Nicolas Winding Refn, e “Namorados para Sempre” (2010), levado à tela por Derek Cianfrance —, mas em “La La Land” parecem ter nascido para isso. Eles se apaixonam, tendo a dança por madrinha, e nos enamoramos deles.

Exaltando o vanguardismo de seu trabalho mais uma vez, Damien Chazelle prefere reviver clássicos como “Juventude Transviada” (1955), dirigido por Nicholas Ray (1911-1979), a reforçar o clichê e aludir a “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz (1886-1962), por exemplo. “La La Land: Cantando Estações” se presta a uma homenagem a tudo o que Hollywood já foi até outro dia, lembrando o poder transcendental que só o cinema tem de nos mandar para outro mundo. Um mundo em que sonhar, mais que necessário, era obrigatório. É por esse mundo que continuamos a dançar.


Filme: La La Land: Cantando Estações
Direção: Damien Chazelle
Ano: 2016
Gênero: Musical/Romance
Nota: 10/10