A vida imita a arte, como diz o gasto clichê, e a arte, por sua vez se vinga e eterniza momentos às vezes muito íntimos da vida de alguém. Sempre se registrou num filme passagens lendárias da trajetória particular de um indivíduo, célebre antes ou depois de exibida a trama — sim, porque, uma vez divulgado um filme, a vida daquela pessoa nunca mais voltará ao ponto de partida —, mas a arte, por ser tão misteriosa, tem o condão de se metamorfosear, fundir mil realidades numa única narrativa e apresentar um resultado cuja genialidade impressiona. Para tanto, em muitos casos, diversas manifestações artísticas se condensam e o que se vê nesse novo todo é algo que já não se pode definir apenas como aquilo que fora, mas que assume a forma com que passa a ser conhecido, para se preservar da ação implacável do tempo. Livros são adaptados para o cinema desde 1896, quando o curta “Trilby e o Pequeno Billee” recriou no cinematógrafo uma cena do livro homônimo, do francês Gerald du Maurier. Antes do cinema, no Brasil, “O Guarani” (1857), do indianista romântico José de Alencar (1829-1877), foi vertido à arte dramática sob a forma de ópera, escrita por Carlos Gomes (1836-1896) e levada aos palcos em 1870.
A partir de então, é cada vez mais comum a mistura de literatura com cinema, às vezes não sem prejuízo da experiência de que o leitor possa ter desfrutado com o texto impresso. Não é impossível que livros ruins se tornem filmes bons — ou, pelo menos, razoáveis —, desde que a nova história que se deseja contar disponha dos elementos certos a fim de fazer aquela trama se encaixar com o mínimo de adequação no novo formato. Diretores de gênio, com talento acima da média, bons atores, sensíveis o bastante para entender a grandeza do desafio de manter vivo o sonho, e enredos que sejam capazes de reproduzir em tela parte do efeito sentido no folhear das páginas, nessa ordem, são um começo auspicioso para um filme com essas características. Uma das melhores qualidades do Oscar é dar visibilidade à literatura, arte cada vez mais esquecida no frenesi das sociedades contemporâneas. Ao menos dois dos favoritos à premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood estão diretamente relacionados a livros — Ataque dos Cães, adaptação da diretora Jane Campion para a novela “The Power of the Dog” (1967), de Thomas Savage (1915-2003), nunca editada em português, e A Filha Perdida, releitura de Maggie Gyllenhaal para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante —, mas os seis favoritos ao Oscar da nossa lista — quatro na Netflix e dois no Amazon Prime Video — têm, em maior ou menor proporção, ligação estreita com outras formas de representação do pensamento e das emoções do homem. Todos lançados em 2021, os títulos estão dispostos em ordem alfabética e deixam claro: este será um dos Oscars mais cabeçudos da história.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix e Amazon Prime Video
Lucille Ball está em crise. Um dos primeiros alvos do macarthismo, a perseguição inclemente a comunistas nos Estados Unidos, iniciada pelo senador republicano Joseph McCarthy (1908-1957), Ball, interpretada por Nicole Kidman, uma das maiores estrelas do showbiz americano dos anos 1950, começa a perder papéis importantes no cinema, e nem seu desempenho em “I Love Lucy” — a série de audiência mais vultosa da televisão nos Estados Unidos, em que dá vida a Lucy Ricardo, uma dona-de-casa como tantas outras do país — é capaz de conter os jornais, que passam a encampar uma verdadeira guerra contra a atriz, cujo término só se deu com o próprio fim do programa, em 1957. Profissional até o osso, Lucille Ball, a comediante mais celebrada da América, tiraria o episódio de letra, não fosse a vida pessoal também estar desmoronando: seu marido, o ator Desi Arnaz, de Javier Bardem, e par romântico na série, protagoniza um dos adultérios mais rumorosos de todos os tempos. Valendo-se de seu talento para inventar histórias que não são as suas, Ball atravessa seu inferno com toda a dignidade. Algum tempo depois, no mesmo 1957, assim como aconteceu com “I Love Lucy”, seu casamento com Arnaz também acabou. Sempre vanguardista, quatro anos mais tarde, em 1961, a atriz se une ao comediante Gary Morton, treze anos mais novo, com quem fica até o fim da vida. Lucille Ball morreu em 26 de abril de 1989, aos 77 anos, de complicações após uma cirurgia cardíaca.
Faz algum tempo que o faroeste, gênero cinematográfico genuinamente americano, vem se apresentando sob pontos de vista completamente inéditos. A adaptação de Jane Campion para a novela “The Power of the Dog” (1967), de Thomas Savage (1915-2003), nunca editada em português, revela, por exemplo, o componente homossexual de seu protagonista, Phil Burbank, de Benedict Cumberbatch. Seu pouco gosto para com as pessoas decorre do fato de ter perdido Bronco Henry, o amigo por quem se apaixonara, e nunca ter sido capaz de digerir essa grande tristeza. Peter Gordon, vivido por Kodi Smit-McPhee consegue identificar o problema e, a partir desse instante, o garoto enxerga em Phil o que Bronco Henry fora para esse seu contraparente a contragosto. Phil, por seu turno, também vai tendo o coração um pouco mais amolengado, se compadecendo do rapaz, querendo ensinar-lhe coisas. Inversamente ao que se tem em “O Piano” (1993), outra grande passagem do cinema em que o talento de Campion também se impõe, o envolvimento romântico entre Phil e Peter fica apenas subentendido, o que, por óbvio, se justifica em se considerando o contexto em que a subtrama toma corpo. Assim mesmo, o caso dos dois rouba as atenções, em especial por causa da forma como Rose se comporta frente à atração magnética de um pelo outro. A natureza perversa de Phil se manifesta mesmo quando a vida parece lhe dar boas razões para se emendar. Se antes o rancheiro via a presença feminina da personagem de Kirsten Dunst — a mulher com quem o irmão de Phil, George, de Jesse Plemons, se casara — à luz de uma ameaça que precisava combater, agora o perigo é ele próprio, de forma que seu interesse sincero por Peter soa como uma vingança, detalhadamente estudada, mas que receberá o contra-ataque devido. Vilão tornado anti-herói, o caráter dúbio do personagem de Cumberbatch é a cobra que ele nietzschianamente fez de questão de agasalhar em seu peito, e que agora está prestes a envenená-lo. Em 2022, “Ataque dos Cães” foi duplamente laureado pelo Globo de Ouro: ganhou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção, para Campion.
A adaptação de Maggie Gyllenhaal para o romance homônimo da escritora Elena Ferrante é um debute respeitável da atriz na direção. Publicado em 2006, “A Filha Perdida” narra as desventuras de uma mulher fragmentada, incapaz de lidar com a verdade e suas consequências, ou pelo contrário, tão acostumada a ter de encarar verdades tão contundentes que tem de aumentar a dose um pouco mais a cada dia, a fim de provar a si mesma que está viva. E foi por aí mesmo que Gyllenhaal se embrenhou, sem pejo, como Ferrante, de apontar as contradições de Leda, a protagonista vivida por Olivia Colman, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “A Favorita” (2018), dirigido por Yorgos Lanthimos, empenhando-se por tentar encontrar o X do problema da personagem.
Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de “Não Olhe para Cima “ suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.
Livremente adaptado do francês “A Família Bélier” (2014), dirigido por Eric Lartigau, “No Ritmo do Coração” igualmente partilha de outras produções que registraram a surdez como impedimento, em maior ou menor nível, quanto a se obter um cenário harmonioso, ou sua aparição repentina sob a forma de um desafio quase inexpugnável, e tanto pior quando se depende da audição perfeita para se ganhar a vida. “O Som do Silêncio” (2020), de Darius Marder, toca o assunto de maneira surpreendentemente madura, concisa, até científica em boa proporção, ao expor a agonia de Ruben Stone, o baterista vivido por Riz Ahmed que fica progressivamente surdo devido às descargas excessivas e constantes de ruído com que o trabalho o obriga a lidar todos os dias. Como se vê, definitivamente o argumento defendido no roteiro da própria diretora não é nenhum portento à genialidade, mas “No Ritmo do Coração” tem seus pulos do gato, e o maior deles quem dá é o elenco. Se em “A Família Bélier” quase todos os atores são ouvintes — e “O Som do Silêncio” nem pode fazer parte dessa equação, uma vez que a deficiência do protagonista é adquirida e, portanto, só se manifesta a dada altura da história —, à exceção de Luca Gelberg, no filme de Heder acontece o inverso: Jones é a única não surda numa equipe invulgar, que reúne Marlee Matlin, ganhadora do Oscar por “Filhos do Silêncio” (1986), levado à tela por Randa Haines, Troy Kotsur e Daniel Durant, que, mesmo sem usufruir do mesmo prestígio profissional de Matlin, mostram a que vieram e entregam um desempenho cujo realismo impressiona.
A narrativa de “Tick, Tick… Boom!” vai e volta, ora retratando a vida pessoal de Jonathan Larson (1960-1996), ora se concentrando em seu processo criativo, ainda que seja impossível dissociar uma do outro. Vivido por Andrew Garfield com sua competência usual, a produção de Miranda se presta a uma retrospectiva da curta trajetória de Larson, entremeando nas sequências que registram a angústia de uma vida meio besta, defendida com a ajuda de um subemprego medíocre e, em muitas situações humilhante — sobretudo quando se reconhece dotado de uma qualidade que os demais não têm —, seus momentos de catarse artística, em que consegue por para fora seus anseios e transforma a opressão da existência em canções. O embate entre Larson e seu espírito atormentado, de um artista desconhecido que ansiava por se fazer notar, por ser valorizado por seu verdadeiro ofício, como se sentisse que para ele o tempo, a exemplo do que acontece num filme de ação ruim ou num desenho animado inconsequente, menos elástico que para os outros, era regido pelo compasso de uma bomba-relógio — daí a referência lúdica de Miranda à onomatopeia do título —, é o grande mote de “Tick, Tick… Boom!”, registro dos bastidores silenciosos e torturantes da composição de um musical sobre um musical. Uma espécie de prelúdio de “Rent”, levado à cena em 1994, um dos shows de maior prestígio na Broadway ainda hoje.