O filme melancólico e inebriante da Netflix que tem 100% de avaliações positivas

O filme melancólico e inebriante da Netflix que tem 100% de avaliações positivas

Fazer um filme é um ato de fé. Primeiro de tudo, há que se acreditar no projeto de todo o coração; depois, precisa-se ter com quem contar ao longo do processo, principalmente nos momentos em que o entusiasmo inicial vai se dismilinguindo, a dureza da realidade se impõe e resta uma história por ser contada.

Sandi Tan, 19 anos, uma aspirante a cineasta na Singapura de 1992, pensou ter preenchido todos esses requisitos quando se lançou em seu projeto de debute na carreira. As circunstâncias que pontuaram as filmagens de “Shirkers”, um thriller caseiro com toques de romance, que contaria as peripécias de S, uma assassina em série a ser encarnada pela própria diretora, decerto superaram o roteiro da produção em si. O filme por trás do filme começa com a entrada de Georges Cardona em cena, um mitômano inveterado que faz de sua própria vida uma odisseia cinematograficamente delirante. Assumindo a natureza de um vilão caricato, Cardona — que se apresentava como um homem de cinema tarimbado, com passagem pela equipe de “Apocalypse Now” (1979), dirigido por Francis Ford Coppola, e capaz de inspirar Steven Soderbergh na composição do protagonista de “Sexo, Mentiras e Videoteipes”, vivido por James Spader uma década mais tarde — roubou a cena. Literalmente.

Como gastar tantos caracteres descrevendo a figura de um canastrão desse nível pareceria o sequestro do trabalho de Tan pela segunda vez, passados trinta anos, o que interessa é o filme em si — não o original, que resta perdido, do mesmo modo que quem o surrupiou, mas o documentário acerca de seu sumiço. “Shirkers — O Filme Roubado”, levado às telas em 2018, 26 anos depois de seu extravio, é um grito de dor, evidenciado pela trilha sonora muito bem sacada de Ishai Adar, que lembra um suspiro de mulher. A narrativa, transfigurada de inocente ficção em documentário eminentemente confessional, prima pela liberação de uma pletora de mágoas que a vida obriga a represar, a fim de que não se morra de raiva, de rancor, de ódios mal digeridos que envenenam, inclusive entre os próprios realizadores.

O trio em torno do qual se desenrola esse enredo, composto por Tan, Sophie Siddique e Jasmine Ng, amigas desde os anos 1980, era um grupo de garotas como quaisquer outras, que amavam os Beatles, os Rolling Stones, Bertolt Brecht e Patti Smith. O espectador logo se identifica e se entusiasma com a vibração das moças, apresentadas quando da confecção de “Shirkers” e depois, nem tão moças assim, nas gravações das entrevistas. É em momentos como esses que vêm à tona segredos não exatamente bombásticos, mas com poder de fogo o bastante para deflagrar estragos consideráveis, mesmo tanto tempo depois. Num dos depoimentos, já no segmento final do longa, Ng, visivelmente aturdida, faz questão de dizer a Tan umas verdades. Entre uma e outra farpa, a diretora de “Shirkers” fica sabendo que as duas não eram lá tão amigas assim, pelo menos da parte de Ng — e que o desgaste da relação nada tem a ver com a azáfama que sempre rege os bastidores de um filme, ainda que experimental. Essa fora a oportunidade que a ex-amiga encontrara para, afinal, botar as cartas na mesa, expor a personalidade dominadora, o método de trabalho opressivo, sua irrelevância diante das ambições de Tan. Mas é razoável se fazer um filme de modo democrático, ouvindo-se todas as opiniões, de atores, produtores, editores, cabendo ao diretor, democraticamente, apenas submeter-se à vontade da maioria? Durma-se com um barulho desse.

As três não escondem a admiração e a possível influência de autores como o Jean-Luc Godard de “Acossado” (1960) e David Lynch em “Veludo Azul” (1986), apreciados mediante um esquema de inteligência severo, a fim de evitar a ação da eficiente censura singapurense. Cardona, um homem prestes a completar quarenta anos, viu nas meninas uma oportunidade de faturar alto. Ninguém nunca há de saber se em algum momento da relação entre ele, Tan, Ng e Siddique existiu algum laivo de boas intenções; o fato é que, passado algum tempo, por algum motivo, o parasita se determina a roubar setenta latas de negativo, caixas cheias de roteiros e as verdes quimeras de jovens cineastas promissoras, mortas no ovo.

“Shirkers — O Filme Roubado” poderia ser tomado à luz de diversas abordagens — a artista ingênua e sonhadora, feita de boba por um falso espertalhão que sequer consegue levar a melhor no final (e o argumento certamente dobraria de tamanho se se considerar que se trata de um homem mais velho contra uma garota ainda indefesa); a dificuldade atávica de se viver de cultura, não importa onde nem em que contexto; as mesquinharias de que são constituídos os bastidores de um filme. Contudo, transcorridas quase três décadas, o trabalho de Sandi Tan se propõe apenas a resgatar algumas memórias, dolorosas, apesar de brandas; pungentes, malgrado líricas.

Essa história de desencontros, lágrimas contidas, coisas não ditas que apodrecem e empesteariam tudo com ainda mais força, não fosse o poder curativo da arte, é uma declaração de amor ao cinema, e por extensão à própria vida, que pode ser particularmente estranha em certas ocasiões, convenhamos.