Tão atrevido quanto perturbador, filme da Netflix é uma viagem de 134 minutos em uma montanha-russa

Tão atrevido quanto perturbador, filme da Netflix é uma viagem de 134 minutos em uma montanha-russa

Unir uma boa ideia a um ator que a encampa sem tergiversações, seguro de que é plenamente capaz de imprimir sua própria marca em seu personagem, e antes disso, convicto de que o argumento sobre o qual deve fundamentar seu trabalho merece se tornar um filme é a mágica mais encantadora do cinema. Essa mágica acontece em “Cam”. O diretor Daniel Goldhaber se vale do conceito da vida paralela nas redes sociais e, no caso de sua história, nos sites de pornografia — ambientes em que a fantasia costuma sair do controle, e não só a de cunho erótico —, para questionar até que ponto eventos que se passam no ciberespaço permanecem restritos ao mundo virtual. E a maneira que escolhe para tanto não poderia ser mais acintosa, jocosa, inovadora, malgrado essa não seja a primeira história do gênero a virar filme.

Rindo castigam-se os costumes, como reza a velha máxima latina popularizada pelo dramaturgo lusitano Gil Vicente (1465-1536). Seria possível acrescentar ao dito que só enxergando-se o que há de hipócrita, de imoral, de putrefato nos costumes é que se pode rir-se deles e, então, quiçá, mudá-los. E não há gênero cinematográfico mais adequado para tal missão que o terror, um crítico ácido da sociedade cuja história se confunde com a do próprio cinema. Em 1896, o francês George Méliés (1861-1938) já dava suas bordoadas em “A Mansão do Diabo”, sobre um homem que se deixa levar pela facilidade das aparências e tem de arcar com o peso de suas escolhas. Sem saber, Goldhaber mantém viva a escola do pioneiro, reproduzindo em “Cam” a premissa usada em “A Mansão do Diabo”, agregando-lhe o seu ponto de vista sobre o assunto que escolhe para mote central de seu trabalho.

A desumanização das mulheres que fazem da autoexposição em páginas de conteúdo erótico o seu trabalho seria um tópico no filme sobre o qual se discorrer, se houvesse alguma espécie de conflito aí. Mas não há: Lola (na verdade, Alice Ackerman), um desempenho notável de Madeline Brewer, é uma dessas moças que ganham a vida nesse novo ramo da prostituição, uma prostituição muito mais limpinha, segura, e, o melhor, muito mais rentável, do que a versão old school daquele que dizem ser o mais velho dos ofícios. Alice, claro, nunca sentiu a menor necessidade de revelar à mãe, Lynne, (Melora Walters) como se sustenta, não por temer sua reação, uma vez que a cabeleireira faz o tipo mãe amiga, mas por vergonha mesmo. A cam girl faz fortuna sem nenhum esforço, graças às lautas gorjetas que homens de meia-idade solitários, como o plácido Tinker (Patch Darragh) e Barney (Michael Dempsey), metido a conquistador, lhe destinam quando Lola diz ou faz alguma coisa menos óbvia que mostrar os seios. Tudo seguiria assim ad aeternum, Alice analisando seus espectadores a fim de traçar estratégias e um dia ser a número um do site — não fingir orgasmos, nunca revelar seu endereço e tentar não se envolver com clientes são algumas de suas regras de ouro — e sendo analisada por eles, até que tem de enfrentar o primeiro grande desafio da “carreira”: uma impostora exatamente igual a ela usurpou o seu reino dos sonhos inconfessáveis e ameaça reduzir a pó seu castelo de pelúcia rosa.

Se o andamento de “Cam” poderia sido um tanto menos arrastado, o filme ganha em dinamismo a partir desse primeiro plot twist, e tanto melhor que não tenha levado mais tempo. Goldhaber é um diretor hábil, que amparado pelo roteiro preciso de Isa Mazzei, uma ex-cam girl, não deixa a narrativa perder a cadência. Ritmo a história tem de sobra; o que lhe falta em certos momentos é firmeza. Mesmo deixando em banho-maria a necessidade de abordar o enfrentamento de Alice e sua doppelganger por um tempo algo estendido, o diretor retoma o leme ao tornar a presença da falsa Lola cada vez mais invasiva e insustentável, já que a intrusa se esmera em exceder os limites de uma Alice que se supunha descolada, sem qualquer pudor.

Perceber-se uma mulher comum, sem a aura de mistério que lhe atribui o soft porn, sentir-se uma criatura que, finalmente, começa a recuperar sua porção humana, que sente falta de ser alguém exclusivo no mundo, é o que junta Alice e a persona que inventara para si num mesmo propósito, o de reaver o espaço pelo qual se mantinha em contato com o restante do mundo, malgrado de um jeito torto. A maneira que Brewer escolhe para realçar a fragilidade que se apossa de sua personagem leva o público a acreditar que Alice, enfim, descobriu, ainda que da forma mais traumática, que a suposta facilidade da vida pela qual optara pode lhe trazer muitos problemas. Embora tire de letra o embate com o avatar que lhe rouba parte da própria existência — a parte descartável, frise-se —, é impossível saber se continuará tão safa (pelo que se permite vislumbrar do desfecho de “Cam”, a moça é meio cabeça dura para se dar conta de quando extrapola), mas ninguém vive por procuração. Todos somos livres para errar — e mesmo para fazer do erro um meio de vida.