Filme diferente de tudo o que você já viu e ganhador de quatro Oscars está na Netflix

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As sociedades asiáticas se destacaram ao longo da história por desenvolverem uma maneira própria de conduzir seu destino. Seja nas atitudes mais comezinhas, como ao preparar uma refeição, seja rodando um filme, o oriental tem o condão de reunir leveza, ritmo, graça e precisão matemática, em especial quando se trata da segunda atividade — e mais ainda quando este filme se desdobra sobre uma trama que envolve a prática de artes marciais. A fluidez das coreografias, ensaiadas à exaustão, bem como o movimento que cada ator deve executar num take que se detém sobre o embate entre dois (ou muitos mais) personagens, mesmerizam espectadores de todo o mundo, justamente impressionados com o que os filmes do gênero são capazes de levar à tela.

O Tigre e o Dragão”, dirigido pelo taiwanês Ang Lee, é uma joia rara, muito mais valiosa passados 21 anos de sua estreia no Brasil, em 16 de fevereiro de 2001. Além de Lee, grande parte do sucesso do longa se deve ao honconguês Yuen Woo-Ping, responsável pela coreografia das sequências de luta, iniciando um trabalho de sucesso que se espraia em produções do quilate de “Kill Bill Vol.2” (2004) e a franquia “O Grande Mestre”, a partir de 2008. Rapidamente, “O Tigre e o Dragão” adquiriu status de verdadeira obra-prima não só no que respeita à narrativa em si, como um dos representantes mais bem-acabados do que se convencionou denominar por poesia em movimento, definição por excelência das artes marciais que emprega, recurso que se constituiu mais que mera sofisticação estilística e assumiu o proscênio na categoria.

Ang Lee não prescinde de contar uma história como uma outra qualquer no cinema, oriental ou não. Contudo, o que confere toda a autenticidade de seu filme é a escolha por privilegiar a fidelidade ao texto em que se baseia “O Tigre e o Dragão”, o quarto volume da Pentalogia de Ferro, de Wang Du Lu (1909-1977), publicada entre 1931 e 1949, que se tornou célebre ao retratar o cotidiano de guerreiros anônimos, homens sem rosto empenhados na luta por fazer valer a justiça, histórias pontuadas por romance, ação e, claro, a prática de inúmeras modalidades de artes marciais, o que acabou por desembocar num subgênero imediatamente idolatrado pelos leitores que já admiravam o jeito ágil, direto, com que conduzia seus relatos. O wu xia passou a ganhar cada vez mais terreno nos anos 1940, tomando por base além da luta marcial, o argumento de conflitos que se sucediam tendo a Idade Média por cenário e localização temporal, ora fantasiosos, ora com o emprego de componentes históricos fidedignos, sendo frequente a alusão à China dos Setecentos.

No caso de “O Tigre e o Dragão”, o roteiro deixa claro que a trama se passa em 1779, em plena Dinastia Qing (1644-1912), época de ebulição social no Ocidente, três anos depois da independência dos Estados Unidos e uma década antes da Revolução Francesa. A civilização ocidental avançava em pleitos coletivos, enquanto no Oriente, o homem se preocupava com coisas tidas por obsoletas, como a evolução do espírito e a consequente busca por um lugar no mundo, processo que envolvia muito mais questões idiossincrásicas que políticas. É precisamente nesse contexto que surge o guerreiro Li Mu Bai (Chow Yun Fat) e sua espada, a Destino Verde. Homem abnegado e solitário, Li Mu Bai não esconde o interesse por Yu Shu Lien (Michelle Yeoh), também iniciada nas artes da defesa pessoal e no manejo de adagas e machetes, ao passo que Jen Yu (Zhang Ziyi) tem de lidar com a aspiração de se tornar uma guerreira como Yu Shu Lien, driblando um casamento iminente.

A ideia geral do livro foi inteligentemente apropriada por Ang Lee, na medida em que a adaptação do diretor a todo momento realça o contraste entre as duas realidades, justapondo a dicotomia entre a satisfação pessoal e a renúncia do indivíduo em nome do bem comum, uma e outra pródigas de suas tantas alegrias e seus incontáveis tormentos. O diretor também narra a história enaltecendo aspectos muito particulares da cultura chinesa, como o taoísmo e outras práticas religiosas que valorizam o culto aos ancestrais; o respeito quase devocional do discípulo pelo mestre; a observação de códigos de honra específicos, tácitos, porém rígidos; e, por óbvio, o emprego das artes marciais como ferramenta que possibilita ao guerreiro um meio de se defender, adquirir experiência diante das instabilidades da vida e uma oportunidade de ascensão social. Personagens a exemplo de Dark Cloud (Chang Chen), Sir Te (Sihung Lung) e, ainda mais destacadamente, Jade Fox (Pei-Pei Cheng), se prestam a movimentar a narrativa em tal ou qual sentido, iniciando conflitos e encaminhando a história para os muitos anticlímax ao longo de suas duas horas de projeção, quase todos relacionados à figura da Destino Verde, mas deixando espaço para a abordagem sobre o uso do veneno, outro signo de relevo nos contos do Oriente.

A esse propósito, “O Tigre e o Dragão” se apresenta como um filme sobre eventos inusitados, característica que lhe confere verossimilhança, já que os contendores se batem por questões de vida ou morte, mas igualmente por um desentendimento menor qualquer, nem sempre se levando ao pé da letra a obediência aos preceitos acerca de ordem e boa conduta. Permeando a inconstância dos personagens, as lutas encantam pelo rigor da coreografia, plenas de saltos, encenadas grande parte das vezes na natureza agreste das florestas de uma China ainda desconhecida, inexplorada, que talvez nem existam mais, visto o progresso inestimável por que passou o país ao longo das últimas duas décadas. Aliás, quanto a esse aspecto, é nítida a diferença entre o filme original e a sequência rodada 16 anos depois, em 2016, de que Michelle Yeoh é a única remanescente do elenco da matriz. Desdobrando com mais cautela o argumento da relíquia sobre a qual gira o eixo da história de 2000, “O Tigre e o Dragão: A Espada do Destino”, dirigido por Yuen Woo-ping, que não conseguiu escalar a muralha de reservas da crítica e do público e fica muito, mas muito aquém da produção que lhe deu origem.

A trilha sonora do compositor clássico contemporâneo Tan Dun, gravada a toque de caixa pela Orquestra Sinfônica de Xangai, torna patente o equilíbrio de tradição e renovamento, ambos prestigiando a singeleza. Todo falado em mandarim — uma salada de diferentes sotaques, já que parte dos atores não dominava o idioma —, “O Tigre e o Dragão” roubou a cena no Oscar 2001: recebeu uma dezena de indicações e levou quatro estatuetas, Melhor Filme Estrangeiro; Melhor Fotografia, para Peter Pau; Melhor Trilha Sonora Original, para Tan Dun; e Melhor Direção de Arte, para Timmy Yip. Malgrado se detenha sobre uma história de há mais de dois séculos, ao falar dos tantos dilemas éticos a rondar a trajetória do homem, a busca por autoafirmação, o amor impossível, o amor menosprezado, o filme é um trabalho tão vigoroso e ao mesmo tempo tão lírico que algumas sequências de lutas em telhados de palácios e copas de árvores até poderiam durar um pouco menos, a fim de que pudéssemos apreciar com mais parcimônia as reviravoltas inesperadas, os figurinos ostensivos e discretos, mas sempre adequados, e a fotografia de Peter Pau, realmente digna do prêmio máximo da Academia de Hollywood. Trocadas as juras de amor entre as personagens de Chang Chen e Zhang Ziyi, ninguém se conforma em não poder deslizar sobre o precipício e viajar com ela. Uma anti-heroína como poucas numa história rara.