Genocida é a mãe

Genocida é a mãe

Matei. Matei um passarinho. Agora mesmo, matei um maldito passarinho com a droga do meu carro. Pensei que voaria, no último instante, no limiar da aproximação e da frenagem. Não voou o bichinho, coitado. Acho que era um canário. Sim. Era um canário-da-terra, espécie das mais comuns aqui no cerrado. Um ingênuo canarinho com penas verde-amarelas como a bandeira. Odeio patriotas terrivelmente mefistofélicos. Deve ter caído do ninho. Expulso é que não foi. Porque ele não voou quando teve uma chance. Porque lugar de passarinho não é no chão, dando mole para gatos e para homens que dirigem automóveis com pressa demais. Agora, certamente — ou não — vai voar num céu de passarinhos que sequer existe, senão nas mentiras confortáveis que os pais contam para os filhos menores. Genocida é a mãe. Desacelerei o pedal, sabem como é? Tirei o pé. Esperava que aquela ave voasse de medo do meu caminho repleto de pedras e de tombos. Pedras que não voam senão para atravancar o meu dia e para beijar as vidraças. Já andava cheio da minha falta de convicções e de crendices. Considerava aquele trágico incidente matutino uma espécie de sinal do universo. Um enigmático presságio de que eu também petrificava, sem perceber um iminente estado de rocha bruta. Não tão célere e tão fausto quanto um canarinho-da-terra, que nem bem aprendeu a voar, já tinha morrido sob a roda de um automóvel pilotado por um homem enveredado em atrasos. Sentia-me congelado detrás do volante. Não me lembrava de ter passado por tamanha sensibilidade nos últimos tempos. Era apenas mais uma ave, ora e essa. “Vá em frente, mas, siga com maior cuidado, senhor”, teria gorjeado o passarinho, se tivesse tido a oportunidade de cantar para mim em bom português. Pra bom entendedor, um pingo é letra. Pararia para escutá-lo? Eu, justamente eu, que não tinha mais tempo para gastar dando ouvidos aos animais e aos rios cantantes. Eu quase nunca ouço as vozes que ribombam nos meus interiores, certas cavernas de medos secretos, a maioria deles, incoerentes. Desci do carro, limpo, lépido, porém, aturdido. A expectativa de sangue mesclado às penas e de vísceras esparramadas no asfalto afligia-me particularmente. Ainda era cedo do dia. Por que não dirigia mais devagar? Divagava. Procurei os vestígios do animalzinho dizimado por conta de um minuto de bobeira, mas, nada encontrei. Ajoelhei-me. Sujei a calça nova. Era o mínimo que eu podia fazer: sujar-me de vergonha. Pesquisei embaixo do cardam. Niente. Nem sinal da vítima plumosa. Teria escapado ileso sem que eu percebesse? Por fim, ouvi um gorjeio estridente que vinha da calçada. Pesquisei os galhos de uma velha sibipiruna que sempre se desfolhava no mês de setembro, uma das poucas árvores que ainda resistia ao jugo da especulação imobiliária que infernizava a cidade e seus homens. O canarinho, o meu canarinho, cantava impaciente, são e salvo, mais são e mais salvo do que eu próprio. De onde eu estava, poderia acertá-lo facilmente com uma atiradeira, se ainda fosse um menino. Foi muita sorte minha nunca ter matado um passarinho quando era criança e andava com estilingues presos à cintura. Que graça de ave, que graça. Vai cantar bonitinho assim lá no quintal da minha casa, humilde criatura. Pela óbvia grandeza moral, parecia mesmo uma ave sortuda, um filhote pouco experimentado com os riscos e as mazelas dos seres humanos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Ainda precisava trabalhar. E ganhar mais dinheiro. E gastar mais dinheiro. E fazer a roda da economia girar. Tal e qual as rodas do meu carro, um carango de segunda-mão, financiado em suaves prestações, que guardava, que escondia sob um dos pneus dianteiros o cadáver frágil, fresco e calado de um filhote de canarinho-da-terra abatido durante um voo inaugural. Ele tinha caído do ninho. Incentivado pela própria mãe. Já era hora de voar.