Suspense policial, diferente de tudo e extremamente inventivo, acaba de chegar à Netflix

Suspense policial, diferente de tudo e extremamente inventivo, acaba de chegar à Netflix

A fim de sobreviver em meio a um mundo cada vez mais absorto pela tecnologia, o cinema também se renova. Todos os anos, são lançados milhares de filmes ao redor do globo, de arrasa-quarteirões aos quase artesanais, que tiram leite de pedra devido a restrições orçamentárias draconianas e, muitas vezes, apresentam resultado surpreendente. O caso mais emblemático na segunda categoria, sem dúvida, foi “A Bruxa de Blair” (1999), em que os diretores Daniel Myrick e Eduardo Sánchez contam a saga de três estudantes de cinema rodando um documentário amador sobre a habitante da floresta de Burkittsville que, no século 18, desaparecera sem deixar vestígio — tudo filmado por três câmeras de mão, cada uma conduzida por um ator.

No caso de “Searching” (2018), transcorridas quase duas décadas, a inteligência artificial fez seus muitos progressos e o que se assiste é infinitamente superior à produção de 1999 do ponto de vista técnico. No que diz respeito à narrativa, aqui, assim como em “A Bruxa de Blair”, o recurso do found footage, que enaltece o caseiro no filme, por óbvio também se faz presente, com a diferença de que o emprego de elementos do universo sobrenatural dá ao filme de Myrick e Sánchez a aura mística que a maioria esmagadora dos thrillers de terror tanto prezam. “Searching”, dirigido pelo então novato Aneesh Chaganty, fala de horrores bem mais prosaicos. Alguns deles, aliás, cabem na palma da mão.

Igualmente se valendo de um enredo de mistério, Chaganty alcança o público tanto como se empregasse qualquer criatura sobrenatural no roteiro de seu longa. O desaparecimento de Margot (Michelle La), a filha adolescente de David Kim, vivido com denodo por John Cho, adquire status de verdadeiro enigma, uma vez que passadas 37 horas ninguém, nem mesmo a competente Rosemary Vick (Debra Messing), detetive incumbida do caso, tem a mínima ideia de onde a garota possa estar. Até que ocorre a David procurar por alguma evidência no computador da filha. O ambiente virtual foi tão organicamente incorporado ao cotidiano de homem contemporâneo que quase ninguém se dá conta de que tudo o que fazemos online é registrado e armazenado num gigantesco banco de dados. À medida que a comunicação instantânea evoluiu, também se fez premente estudar mecanismos a fim de aprimorar o que acontecia naquela parte do universo em que todos parecem iguais, mas da mesma forma que no mundo da matéria, há os mais iguais que os outros.

Ao longo de mais de ano e meio da pandemia de covid-19 — e contando —, observou-se o expediente de se fazer filmes domésticos, com o uso de câmeras caseiras, que por melhores que sejam, nunca irão se equiparar às grandes angulares e teleobjetivas do cinemão comme il faut. A questão é polêmica por natureza: da mesma forma como existem os que torcem o nariz para o aspecto novidadeiro do recurso, há quem se declare impactado pela tendência desde criancinha, justamente por assim se desembolorar um tanto o cinema, em especial em tempos de tantas revoluções por minuto. Um raciocínio é inquestionável: o formato screenlife (“tela viva”, numa tradução livre, ou “vida na tela”, literal), proporciona toda a autonomia que profissionais do cinema tanto reivindicam, precisamente devido à sua natureza experimental. “Host” (2020), do realizador britânico Rob Savage, por exemplo, não faria o menor sentido se filmado num contexto que não remetesse ao do isolamento compulsório que o flagelo do coronavírus suscitou. Em sendo anterior à peste, “Searching” comprova que o “cinema em casa” veio mesmo para ficar faz tempo.

A angústia de que o espectador é tomado no filme se deve, em grande medida, exatamente à atmosfera claustrofóbica dos cenários. Como se diante de obras-primas do porte de “A Chegada” (2016), do franco-canadense Denis Villeneuve — aqui ressaltando-se em particular o quesito da perspectiva —, quem assiste a “Searching” se sente fisicamente envolvido pela trama, abraçado por ela, gastando um centésimo do que despendem os grandes estúdios em portentos como os de Villeneuve. Mais um dos muitos desafios que esse jeito, digamos, intimista de se fazer cinema decerto imporá à indústria estabelecida.

“Searching” cresce ao expor um drama de família de modo mais contido do que o habitual. Aqui, forma e conteúdo bebem da mesma fonte e o resultado — coeso, enxuto, sóbrio — delineia com nitidez a frieza do relacionamento de David e Margot, ele subitamente viúvo e ela, órfã de repente. O sumiço da garota se presta a reviver nesse pai o bem-querer por aquela filha, permite que ele se aperceba do quanto ela lhe faz falta, de que não quer outra perda. A tristeza do personagem de Cho, numa performance assustadoramente vibrante — lembra-se quando dissemos, no início desse artigo, que esses filmes podem guardar surpresas? — contagia a audiência, que passa a torcer para que tudo não passe de um capricho de Margot, que ela volte sã e salva e que eles vivam felizes para sempre. Até a próxima crise existencial de uma ou do outro.

Crônica perspicaz sobre a intromissão de dispositivos eletrônicos na vida do homem vulgar, “Searching” acende a luz amarela para os riscos de se delegar à informática o papel de regular nossa euforia, nossas frustrações, nossos amores, nossas agruras, alerta para filhos que tomam seus pais por ultrapassados e para pais, que se rendem à falsa onipotência da máquina, se submetem a ela e desistem fácil demais da felicidade. O ninho vai ficar vazio algum dia, mas que restem boas lembranças para preenchê-lo.