Bonito e cruel ao mesmo tempo, um dos mais belos filmes da década está no catálogo do Amazon Prime Video Divulgação / Annapurna Pictures

Bonito e cruel ao mesmo tempo, um dos mais belos filmes da década está no catálogo do Amazon Prime Video

Barry Jenkins vem se tornando um pesquisador das minorias nos Estados Unidos há 20 vinte anos. Em 2003, Jenkins estreou como diretor com “My Josephine”, curta-metragem de nove minutos em que apresenta uma metáfora da América pós-11 de setembro. Inicialmente pensado apenas como um trabalho de conclusão do curso de Cinema e Artes Visuais na Universidade do Estado da Flórida, em Tallahassee, “My Josephine” tornou-se um filme-fetiche que já deixava claras suas intenções grandiloquentes. Treze anos depois, já reconhecido como homem de cinema, Jenkins se incumbira de seu maior desafio profissional até então: adaptar e dirigir “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, livro do ator e escritor americano Tarell Alvin McCraney, que também trabalhou no projeto. “Moonlight” (2016) conferiu a Jenkins o gabarito artístico que lhe faltava, sendo o responsável por inclui-lo no rol escasso de realizadores que ganharam os prêmios de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme numa mesma edição do Oscar. Nascia uma estrela.

A história de Chiron, um garoto negro que tenta se manter vivo em meio à mais completa degradação moral provocada pelo abuso de drogas atraiu todos os holofotes por ser o primeiro longa vencedor da categoria mais importante do Oscar a contar uma história gay e ter no elenco unicamente atores negros. No ano seguinte, Barry Jenkins já teria uma nova empreitada na agulha, outra transposição de um texto literário para as telas. Tratava-se da novela “Se a Rua Beale Falasse”, do romancista americano James Baldwin (1924-1987). Jenkins já burilava o roteiro há quatro anos, desde 2013, e com o prestígio que alcançou com “Moonlight”, conseguiu produzir o filme, que viu a luz do sol em 14 de dezembro de 2018.

Em “Se a Rua Beale Falasse”, Jenkins traz a história de Clementine, a Tish, e Fonny, amigos que passaram a infância e adolescência no Harlem, bairro barra-pesada do subúrbio ao norte de Nova York. À medida que o tempo passa, como se ele tirasse a venda dos olhos dela e vice-versa, do mesmo modo que naqueles programas cafonas de encontros amorosos na televisão, descobrem que foram feitos um para o outro. Uma vez que são pobres, desvalidos — e pretos —, esse romance enfrenta obstáculos o seu tanto peculiares, tomando-se a dificuldade do negro em se inserir no mercado de trabalho, na sociedade de consumo, na vida como ela é nos Estados Unidos dos anos 1970.

A discriminação racial na América começava a adquirir uma perigosa carga dramática já a partir dos anos 1950, na esteira da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), devido à pauperização natural após uma sequência de conflitos armados sem trégua por longos seis anos, ao fim dos quais a população civil encontrava-se perdida. Negros, sempre preteridos em empregos formais, passaram a ser caçados nas ruas. Não podiam frequentar os mesmos lugares que os brancos, por exemplo, situação que vinha desde antes da emancipação dos escravizados na América, durante a Guerra Civil Americana (1861-1865). Com a Décima Terceira Emenda, promulgada pela Câmara dos Representantes americana, a Câmara dos Deputados deles, em 31 de janeiro de 1865, todo cidadão dos Estados Unidos já nascido ou por nascer era considerado livre. Como a história não se faz à base de leis, mas de vontade política, consciência cívica e coesão social, continuam a se observar nos Estados Unidos episódios em que se destila ódio racial pelos motivos mais torpes, em grande parte dos casos protagonizados por policiais sem o tirocínio necessário para lidar com situações de tensão — e para administrar suas próprias emoções —, que catalisam a raiva nacional despertada por uma chaga que insiste em não se fechar.

E assim se dá com Fonny. Quando sua relação com Tish começava a engrenar, o protagonista de “Se a Rua Beale Falasse” é confrontado com a acusação injusta do estupro de uma porto-riquenha, ou seja, uma minoria atacando outra. O rapaz é de imediato encaminhado para a cadeia, onde vai permanecer até que se marque o julgamento, e em meio ao turbilhão que colhe sua vida, Tish fica sabendo que espera um filho do companheiro. No vaivém do processo, a garota, ajudada pela mãe (a ótima Regina King, diretora de “Uma Noite em Miami”, de 2020, que se debruça sobre a questão étnica nos Estados Unidos), se depara com uma perversa batalha judicial, tudo para ver Fonny livre até que a criança nasça.

Barry Jenkins parece ter escolhido um bom ramo ao qual se dedicar. Com “Se a Rua Beale Falasse”, cujo enredo sombriamente triste suscita no espectador, negro ou não, uma ânsia por se indignar, por se engajar na discussão da igualdade de raças — argumento que, ao menos do ponto de vista científico resta completamente superado, uma vez que o homo sapiens não apresenta subclassificações pautadas por caracteres físicos. A fim de dar ênfase à roda-viva de emoções da protagonista, também ela aprisionada num mundo paralelo que não compreende, Jenkins opta por distribuir a narrativa entre presente e passado, se espraiando sobre a forma como Tish se comporta diante de cada nova e tétrica circunstância que se lhe apresenta, e, nesse particular, o filme toma a aura de um coming-of-age bem construído e original, ao passo que desenvolve as cenas que se concentram sobre a ligação sólida, profunda, transcendental que ela mantém com Fonny. Sharon, a mãe de Tish vivida por King, oferece um contraponto refrescante na aridez da narrativa. A veterana se empenha por deixar clara a confiança que a personagem tem no genro, dando alento à filha e à audiência de que tudo vai acabar bem. O talento de Regina King, fundamentado em grande medida no vigor físico da atriz, faz de Sharon um dos pontos altos da história; King recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel, e a partir de então, foi se cacifando para tentar voos mais ousados, como em “Uma Noite em Miami”.

A excelência técnica, aliada à sensibilidade artística de Nicholas Britell, virtuose do piano, também se constitui uma boa razão para conferir o desempenho de “Se a Rua Beale Falasse”, igualmente exemplar no que diz respeito a figurinos e, principalmente, fotografia, com o emprego de cores quentes e tons vibrantes como o vermelho-sangue — que rouba a cena sob a forma de um guarda-chuva numa tomada noturna — e o dourado. Tudo muito bem pesado no intuito de exibir um romance que, apresentando todas as condições de se transformar num amor eterno, morre no ovo, devorado pela serpente do preconceito.