Suspense psicológico da Netflix é um dos melhores filmes da história recente do cinema

Suspense psicológico da Netflix é um dos melhores filmes da história recente do cinema

Tentando despistar seus sentimentos, o homem cria armadilhas que o aprisionam nos labirintos de sua própria memória. Tempo e espaço são conceitos ilusórios, meramente ilustrativos, para que tenhamos alguma noção do que já aconteceu, do quanto falta para atingirmos determinado ponto do que se convencionou qualificar como futuro e onde nós estamos agora, entre um e outro extremo. Com a teoria da relatividade, publicada em 1905, um dos trabalhos mais célebres de Albert Einstein (1879-1955), o físico alemão naturalizado americano faz menção justamente a essa natureza elástica do tempo, já que as leis da física são iguais para todo referencial inercial, isto é, um ponto do qual se deseje partir, a fim de se atingir dado lugar no universo. A velocidade da luz, por sua vez, não sofre a interferência da fonte emissora e de quem a recebe, do corpo que a emana para o qual se dirige, apresentando frequência equivalente em todos os sistemas inerciais de onde se origine.

Em “Durante a Tormenta” (2018), o diretor espanhol Oriol Paulo doma a aridez dos mandamentos da ciência de Einstein e leva à tela uma ficção científica como poucas já apresentadas pelo cinema. Aqui, os elementos a partir dos quais toda a história toma corpo surgem com uma tempestade, que ocorre simultaneamente em 1989 e 25 anos depois, em 2014. O ano de 1989 marca a queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro, data emblemática do século 20, tanto que o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) a define como seu efetivo término. Há pontos de contato interessantes nas trajetórias desses vultos da humanidade, ambos judeus que tiveram de emigrar para os Estados Unidos escapando do furor assassino de Adolf Hitler (1889-1945) no mesmo ano, 1933, quando Hitler é nomeado chanceler da República de Weimar (1919-1933), o que, não por acaso, se configura no seu encerramento e na ascensão do Terceiro Reich (1933-1945), que felizmente não durou mil anos como desejava o facínora, “apenas” 12 — mas as coincidências talvez parem por aí. Hobsbawm, comunista de carteirinha (o historiador era membro do Partido Comunista do Reino Unido) e um dos intelectuais que com mais brilhantismo conseguiu destrinchar o pensamento marxista, se refere à queda do Muro como o princípio do fim, ou seja, a utopia da igualdade entre os homens cedia lugar à selvageria do capitalismo, em que todo o globo era uma economia de mercado, com tudo o que isso implicasse em avanços e retrocessos, estes mais que aqueles para Hobsbawm.

A queda do Muro de Berlim é, decerto, uma das imagens de maior apelo midiático ainda hoje. Oriol Paulo lança mão desse registro e aproveita para situar o espectador em “Durante a Tormenta”. Nico, um garoto na segunda infância, dedilha acordes na guitarra, tudo gravado por uma filmadora VHS, enquanto a tempestade furiosa do título risca o céu de relâmpagos. Gritos que supõem virem de uma casa próxima o fazem interromper o exercício; ele vai até lá e vê um homem que acabara de matar a companheira a golpes de faca. Aterrorizado, Nico foge dali e no percurso é colhido mortalmente por um caminhão.

Um quarto de século mais tarde, o tempo novamente instável, Vera, David e a filha deles, a pequena Gloria, vão morar na casa que fora de Nico. A enfermeira acha no armário a filmadora e um monitor de televisão antigo, que pertenciam ao defunto. Vera consegue estabelecer contato com Nico, mesmo separados no tempo por duas décadas e meia, e adverte o garoto para o que lhe aconteceu ao se dirigir à cena do crime. Nico, então, sobrevive.

Por causa dessa resolução, à primeira vista ética, humana, Vera passa a sofrer as consequências do chamado efeito borboleta, em que uma ação desencadeia fenômenos imprevisíveis e que não se relacionam necessariamente ao fato que os gerou. Agora, não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. O caos particular da protagonista a lança para um tempo que não é o seu, do qual pode nunca mais sair, como um dos personagens de “Meia-Noite em Paris” (2011), já nos estertores do filme de Woody Allen. Para ter sua vida de volta, Vera precisa recuperar os aparelhos usados por Nico em 1989 e reencontrá-lo, agora homem feito.

A viagem no tempo é, na verdade, apenas figura de linguagem. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma pletora de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. Ao longo do enredo, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade, nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Um Contratempo” (2016), e desenvolve uma questão estimulante: o homem tem de se submeter ao tempo, mas ao fazê-lo raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança. Se tudo correr bem, vence-o e tira dele a única coisa que pode: sabedoria. Há os que conseguem, os que passam a vida tentando e, a maior parte, os que supõem que o tempo não é capaz de ensinar nada. Para esses, viver é tempo perdido.