Polêmico, tenso e brilhante, filme lançado pela Netflix em 2021 é um dos mais subestimados do ano

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A justiça deveria ser cega, mas ao longo dos anos, a fim de atender a certos anseios, acabou desenvolvendo uma espécie de visão seletiva. É o que se depreende de “Monstro”. A população carcerária brasileira está prestes a atingir a triste marca de 700 mil detentos — quando a capacidade máxima é estimada em pouco mais de 440 mil, o que evidencia uma sobrecarga de quase 63%. Desses, cerca de 62% são pretos ou pardos, isto é, aproximadamente 450 mil presidiários têm essa característica étnica. É como se cadeia no Brasil tivesse mesmo sido feita para o homem de cor, como se dizia noutros tempos. Os brancos estariam lá de intrometidos, até nisso lhes tomando o lugar…

No caso dos Estados Unidos, a situação é ainda pior. Os custodiados pelo Estado na América passam dos dois milhões, universo composto por 66% de negros. Seria interessante saber quantos desses indivíduos receberam assistência jurídica adequada, visto a ampla defesa ser um preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, originalmente publicada em 1948 e filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799. O documentário “A 13ª Emenda” (2016), dirigido por Ava DuVernay, ajuda o público leigo a entender e se familiarizar com detalhes do ordenamento jurídico americano, segundo DuVernay, intencionalmente falho e propenso a atormentar e incriminar cidadãos pretos.

“Monstro”, de Anthony Mandler, é um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável — e causa espécie saber que, embora tenha sido finalizado em 2018, levou três anos para ser lançado em circuito comercial, em 2021, mais um sintoma do descaso com o assunto. Baseado no livro homônimo do escritor e ativista negro Walter Dean Myers (1937-2014), “Monstro” narra a história de Steve Harmon, interpretado por Kelvin Harrison Jr., um garoto negro de 17 anos que mora no Harlem, subúrbio barra-pesada de Nova York, onde o autor também passou seus primeiros anos. Steve não tem nada a ver com os demais rapazes da vizinhança: é um estudante aplicado de um colégio de elite em outro bairro, tem a carreira de cineasta como seu objetivo maior e vive no seio de uma família unida que o ama. Ao fazer um favor para a mãe e ir até a mercearia perto de casa, acaba sendo implicado num roubo violento, que resulta na morte do dono da loja. Steve é preso em flagrante e imediatamente encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece aguardando julgamento.

O espectador mais apressado talvez creia, ao bater os olhos sobre o material de divulgação sem prévio aviso, que o enredo se refira a uma narrativa fantasiosa repleta das criaturas bizarras que supomos conhecer. Aqui, há, de fato, seres monstruosos, mas são todos de carne e osso — e podemos cruzar com eles a qualquer momento ao longo da vida e, lamentavelmente, em se ostentando um nível um pouco mais pronunciado de melanina sob a pele, essas chances aumentam sobremaneira (e redobram, caso não se disponha de poder aquisitivo o bastante a fim de constituir um bom causídico). A partir do momento em que se encontra irremediavelmente vinculado a um processo criminal que pode lhe abreviar anos de liberdade enquanto não vai a julgamento, Steve é obrigado a passar por situações as mais humilhantes e arriscadas, como ter de se valer da homizia de presidiários mais experientes, a fim de se manter vivo, e se flagrar constantemente aterrorizado pela possibilidade de cruzar com os verdadeiros bandidos, encarcerados na mesma penitenciária que ele. Sua vida, como não poderia deixar de ser, é tomada por uma espécie de torvelinho em que quanto mais o protagonista tenta se desvencilhar de todas as frágeis acusações a que é confrontado, mais retido fica no centro do caos de que sua vida parece que não vai mais sair.

Relato um tanto furioso — mas igualmente pontilhado de argumentos burilados ao estado da arte — contra uma justiça completamente viciada, que se deixa levar pela voz rouca das ruas ao julgar alguém com base em indícios que não resistem a uma análise fria das circunstâncias e, por óbvio, preconceituosa, racista, “Monstro” centra fogo na atuação da diligente advogada do personagem central, que desde o início acredita na versão de seu cliente e, dessa forma, se esmera em defendê-lo, convicta de que, ao cabo de toda aquela tortura, Steve há de receber um veredicto de fato justo, muito mais convicta do que o próprio Steve, aliás. A esse propósito, como se vale da abordagem de uma questão jurídica, Mandler aproveita para desconstruir a figura do promotor de justiça, a parte acusadora, logo no começo da audiência no tribunal, e o perigo que alguns desses profissionais representam para a salvaguarda dos direitos individuais, da imparcialidade processual, do próprio Estado democrático de direito. O membro do Ministério Público define Steve como um monstro, adjetivo que, encerrando uma verdade ou não, estigmatiza de saída, gruda, expediente que certo tipo de imprensa também emprega, no intuito de resumir o conteúdo de uma matéria, poupar o tempo do público — e, claro, faturar alto. Tudo se configura um jogo de cartas marcadas, no qual, a partir do momento em que se dissemina uma declaração com esse poder retórico e midiático, já se tem um acusado — encurralado entre a opinião pública e a lei, culpado, numa ou noutra conjuntura —, um juiz, o povo ou o promotor ele mesmo, e uma pena, o encarceramento perpétuo.

Utilizando-se de uma direção que opta por tom propositalmente confessional, aliada às atuações formidáveis de Harrison Jr. e Jeffrey Wright, o pai de Steve, e aspectos de natureza técnica que se revelam essenciais — como o pop-up da câmera nos diversos personagens enquanto o julgamento do protagonista avança —, Anthony Mandler faz de “Monstro” uma das histórias mais relevantes do cinema contemporâneo. A divulgação massiva de produções como essa nunca resta debalde: são necessários menos de cem minutos para se ter uma visão renovada acerca da vida.