O filme mais subestimado do catálogo da Netflix Vertical Entertainment / Netflix

O filme mais subestimado do catálogo da Netflix

O sonho por liberdade é o que o homem pode ter de mais precioso. Mas o que fazer quando o sonho de liberdade perde até mesmo sua natureza metafórica e se torna uma espécie de sonho do sonho? Em 1980, o Irã passava por um momento bastante particular. Um ano antes, tivera fim uma sucessão de quase quatro décadas de governos autocráticos centrados na figura de Mohammed Reza Pahlavi (1919-1980). O xá, título da monarquia persa equivalente à imagem do rei no Ocidente, ascendera ao trono ajudado pela eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ao longo da qual a invasão do território iraniano por tropas soviéticas e britânicas se desdobrou na renúncia de seu pai. A monarquia no Irã se caracterizara por adotar iniciativas que lançaram a economia do país na mais absoluta obsolescência, devido à estatização de companhias petrolíferas — o que gerou pânico nos investidores em todo o mundo —, sob o comando do primeiro-ministro Mohammed Mossadegh (1880-1967), eleito democraticamente, mas defenestrado pouco tempo depois, numa operação sinistra que contou o apoio declarado dos americanos e do Reino Unido. Cansado de tanta ingerência sobre os rumos da sociedade, depois de derrubado Mossadegh, o povo se encarregara também do próprio Pahlavi, o que contrariaria os planos das potências ocidentais para a região.

O Oriente Médio parece desde sempre condenado a se livrar de administrações totalitárias personalistas — não raro corporificadas em psicopatas que, deslumbrados pelo poder, logo revelam a verdadeira face de ódio à sua própria gente e à humanidade ela mesma, além de, claro, desviarem algumas centenas de milhões de dólares para paraísos fiscais ao redor do mundo — e cair nas mãos de fanáticos teocratas sanguinários, que longe de manter o cidadão comum a salvo de achaques, ultrajes e subjugações de toda ordem, são os primeiros a se valer desses expedientes quanto a defender a ideia de princípios morais por trás da religião, neste caso, o islamismo. O Irã foi o primeiro a entender que o medo que a desobediência à sharia, a constituição muçulmana cujas leis foram inspiradas pelo próprio livro sagrado da doutrina islâmica, o Alcorão, era um recurso que, no mínimo, suscitava a rejeição a qualquer vontade de contestar — depois vieram Líbia, Iraque e Afeganistão, nessa ordem. O medo é um excelente gestor.

A alegoria da paranoia — que logo degringola em terror — traspassando o contexto social de uma nação asfixiada pela censura, pela observação rígida dos costumes e pelo menosprezo à educação e ao fomento cultural pode se mostrar tarefa inglória, uma vez que pode nem alcançar o objetivo de instruir e tampouco chegar a entreter. “À Sombra do Medo” consegue a façanha de atingir as duas metas, e, se se quiser, mais uma, a de escapar de clichês, perigo sempre à espreita em se tratando de política e a intimidade de um núcleo tão restrito como um casal e sua filha. Shideh, uma ex-estudante de medicina que deseja retomar o curso, mas recebe de um burocrata qualquer a ordem de guardar seu sonho na gaveta indefinidamente, é o retrato do Irã “moderno”: reacionário, conservador no que o modelo pode ter de mais reprochável, misógino, obscurantista. É dito por alto que a protagonista se envolvera nas manifestações contra a tomada do poder pelo aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), a autoridade máxima do maometismo no Irã e, por evidente, se pode inferir que é por essa razão que está sendo penalizada. Já no caminho de volta para a rotina doméstica, da qual nunca mais irá se livrar, o talento de Narges Rashidi deixa patente o sofrimento da personagem, misto de frustração e revolta que se fundem ainda com o anseio por não arrefecer, ainda que saiba que, ao termo de todo pranto, só lhe caiba mesmo se resignar.

A agonia de Shideh é agravada pela convivência com o marido, médico e já estabelecido na carreira, que aos poucos lhe desperta uma ojeriza que cresce. Ainda que ela o ame, é impossível para essa dona-de-casa completamente fora de seu universo aceitar que o marido — justamente por ter se comportado de modo tão pusilânime e cômodo e ter se omitido das discussões sobre o futuro da pátria para a qual diz se dedicar — ter um trabalho, um ofício, uma razão para seguir vivendo, e ela não. Na esteira da Revolução Iraniana, se dá a Guerra do Irã-Iraque (1980-1988), por disputa de território, e o marido de Shideh é convocado. Ficam ela e a filha, Dorsa, sozinhas no apartamento.

Shideh está cercada. Se conseguira se livrar, ainda que sob circunstâncias as mais indesejadas, e não para sempre, do incômodo que o casamento passou a significar para ela, lhe restara a obrigação para com a filha. A maternidade, definitivamente, não é um predicado que contempla todas as mulheres pela simples condição de abrigar em seu próprio ventre a nova vida que, em teoria, preencheria algum possível vácuo numa relação marital. Em 1980, já se haviam feito concessões significativas às mulheres, como a opção por não se casar e mesmo abdicar dos filhos — mas não no Irã e em nenhuma outra sociedade teocrática do mundo islâmico. Dorsa também começa a expressar a sua inconformidade com alguma coisa inorgânica naquele pequeno grupo social, sua família, que redunda numa patologia de dimensões inestimáveis e se dissemina por todo o país. O relacionamento de mãe e filha, antes fluido, afetuoso, amoroso, é agora tomado por questões que, a partir de um argumento em aparência banal, revelam que o que pode restar de harmonia está por um fio. A menina, quase sempre solitária — há uma única cena em que se assiste à personagem brincando com vizinhos no pátio do edifício em que mora —, despeja sobre a boneca Kimia todo sentimento que não consegue direcionar para a mãe. E Kimia, misteriosamente, também vai embora, levada por djins, os demônios, como os descreve o Alcorão. Dorsa ouvira isso de Mehdi, parente do senhorio, que todos julgavam mudo devido a um trauma.

A atmosfera do inexplicável em “À Sombra do Medo” é crescente, bem fundamentada, certeira, e o diretor Babak Anvari faz questão de relacioná-la ao avanço dos conflitos armados entre o Irã e o país vizinho, na medida em que os eventos paranormais se intensificam depois da queda de um míssil (que não é detonado) sobre o prédio e que resta ali, imóvel e sem oferecer riscos à estrutura da construção, como se materializasse o anátema que se abatera sobre Shideh. O filme é magistral ao se valer dos muitos pontos de escuridão da cena e da câmera ágil, que nunca deixa passar uma reação da protagonista, sutilezas que conferem à história a subjetividade que o roteiro, igualmente de Anvari, pede.

Religião altamente fetichista, o islamismo a um só tempo endeusa e amaldiçoa a mulher, a faz refém de seus caprichos enquanto lhe assevera que assim deve ser sua vida para que tenha maior segurança e, por paradoxal, irônico e mesmo cínico que pareça, seja mais livre. O véu é precisamente o objeto-força dessa ideia, que tanto dá às mulheres um aspecto de seres míticos, quase sobre-humanos, como de bestas, que pertencem a um dono específico e dele necessitam para sua própria subsistência. Não por acaso, os djins usam justo esse acessório a fim de impor sua presença no ambiente. Numa das últimas sequências do longa, decerto a mais lírica, Shideh, em sonho, assiste a um imenso véu preto e branco tomando conta do apartamento e, por extensão, de si mesma. Enquanto consegue recuperar Kimia, o brinquedo de Dorsa, o livro de medicina, com que a mãe, já falecida, lhe presenteara, permanece trancado na gaveta de um móvel, à chave, como sua própria existência.

Ao cabo de menos de hora e meia, “À Sombra do Medo” se desvela um filme profético que, na mesma proporção em que exalta o cinema de autor, celebra a especulação intelectual sob sua forma mais nobre, qual seja, a de expor realidades nebulosas a respeito das quais (ainda) pouco se conhece — além de oferecer algum modelo de solução. Esse não é o papel do cinema, mas quando se dá a mágica, o mundo se torna menos trevoso. Os djins são o menor dos males do islamismo.