Filme que é o retrato definitivo do cinema sobre o amor e os relacionamentos, está na Netflix

Filme que é o retrato definitivo do cinema sobre o amor e os relacionamentos, está na Netflix

Mike Nichols (1931-2014) foi um homem incomum. Amante das artes dramáticas, Nichols nunca se conformou entre se estabelecer ou no teatro ou no cinema: fazia as duas coisas, com brilhantismo. Michael Igor Peschkowsky foi obrigado a deixar sua Berlim natal em 1939, aos 8 anos, fugindo com os pais, Paul e Brigitte, e o irmão, Robert, da sanha homicida de Adolf Hitler (1889-1945) ainda no começo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Judeus precisamente no único lugar em que teriam de ser outra coisa, os Peschkowsky emigraram para os Estados Unidos. Mike fora ser outros na América.

A vida extraordinária de Mike Nichols decerto foi matéria-prima de valor inestimável em sua carreira. Laureado nas quatro premiações mais relevantes das artes e espetáculos americanos — Oscar, Emmy, Grammy e Tony —, a partir de trabalhos como “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, lançado em 1966, adaptado do texto do dramaturgo americano Edward Albee (1928-2016), logo foi catapultado ao Oscar e venceu na categoria Melhor Diretor por “A Primeira Noite de um Homem”, do ano seguinte. A experiência que ia adquirindo na profissão, aliada a seu olhar sensível para as coisas da vida, foi lhe dando a cancha necessária a fim de se tornar o grande artista que se tornara.

Em “Closer”, cuja estreia se deu no Brasil em 21 de janeiro de 2005, o que se assiste é um verdadeiro ensaio clínico das relações humanas, analisadas por dentro, escarafunchadas, reviradas, expostas no que há de mais sublime, natureza que em pouco tempo degringola em desvario, psicopatia, uma vontade irresistível e sádica de distorcer a realidade e manipular os outros, e magoar os outros, e magoar a si próprio. Os quatro protagonistas, Dan e Alice e Anna e Larry, dão a partida da trama a princípio com um par de casais e, à medida que o enredo avança, se convertem numa quadrilha, dançando cada qual com um parceiro, como nas apresentações juninas de inspiração europeia, mas também no sentido criminológico, guardadas as devidas proporções, se se quiser. São todos muito descolados, falam de sexo abertamente, metem-se na vida íntima de cada um sem a menor cerimônia, até porque ganham a vida dessa forma: a stripper Alice defende uns trocados numa Londres pantagruélica, desumana, que não poupa ninguém, muito menos quem faz da noite um palco para suas próprias fantasias narcísicas; Anna rouba a alma de seus retratados por meio da lente da sua câmera, tal como os índios entendem a fotografia; Dan é um aspirante a escritor que nunca decola, visto o talento limitado, e paga as contas escrevendo o obituário de pessoas célebres, finalmente igualadas aos indivíduos comuns por meio da morte; e Larry, dermatologista, médico, o mais seco de estilo e de prosódia, exatamente por saber como é o interior do homem, sem figuras de linguagem. Larry atormenta Anna a fim de se inteirar de um possível adultério da fotógrafa, mesmo ciente de que o casamento dos dois já claudica faz tempo, quer detalhes, faz perguntas invasivas. Quer saber, por exemplo, se Dan, que volta à sua vida sob a condição de amante, a faz ter um orgasmo, em que posições fazem sexo e só depois de saciada sua curiosidade mórbida, assume para si mesmo que fora de fato traído e anuncia o desejo de se separar.

O que acontece com Dan e Alice é mais traumático, precisamente por se depreender que há mesmo um amor ali, ainda que em sua forma mais primeva, certamente por serem mais jovens, menos calejados, por terem sofrido menos e ainda nutrirem pela vida um torvelinho de ilusões. O filósofo polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860) se tornou famoso pelas ideias inovadoras acerca da humanidade e as escolhas, sempre equivocadas, que faz ao longo de sua jornada na Terra. Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1819, seu trabalho mais conhecido,  Schopenhauer diz que ao homem é impossível tomar decisões acertadas, visto que está sempre se pautando por uma realidade que não conhece. Ninguém melhor para ilustrar o pensamento schopenhaueriano que Dan, que só depois de enredar Alice em mil patranhas, jogar, declarar um amor que na verdade nunca sentira, se dá conta de que a dançarina de boate é mesmo a mulher de sua vida. Tarde demais.

A personagem de Natalie Portman é a grande chave de “Closer”. Quem poderia dizer, ainda nos minutos iniciais do filme, que aquela figura delgada, prestes a arrebentar com qualquer choque um pouco mais abrupto — o que por pouco não acontece —, meio hipnotizada, engolida pela multidão sem fim de uma megalópole, se mostraria o elo mais forte dos quatro, o mais difícil de se romper — e, de lambuja, o esteio da narrativa? Portman, ainda desabrochando para a vida aos 23 anos incompletos, mas já capaz de um domínio de cena raro, mesmo em veteranos, se vale de microexpressões do rosto e do olhar sempre muito aberto a fim de amparar cada frase dita por Alice. Pela imagem da stripper, é que o público se conecta a si mesmo; a presença de Alice na tela nos fornece a senha: agora, deixem esses três bobalhões de lado e olhem para mim. Sem dúvida, espectador nenhum se atreveria a ser outra pessoa ali senão Alice, que mesmo ainda tão pouco afeita à perversão do mundo — por mais que seu ofício possa sugerir o contrário —, dá um banho de maturidade nos voluntariosos Dan, Larry e Anna.

A experiência da rejeição nunca é desejável. Mike Nichols vivenciara isso não num trabalho, mas na vida ela mesma, ao ter de escapar da morte em 1939. Recebeu todos os merecidos louros ainda na juventude e passara décadas relegado a um ostracismo injusto. Se “Closer” tivesse servido apenas para resgatar seu talento, o filme já mereceria uma ode, mas como nunca precisou de homenagens gratuitas, foi até “Jogos do Poder” (2007), com o qual encerrou a partida. Mike Nichols morreu em 20 de novembro de 2014, mas seu trabalho, felizmente, é revisitado com alguma periodicidade, sem favor nenhum. “Closer” nos deixa mais perto de Nichols, e de nós mesmos.