Um dos melhores filmes das últimas duas décadas, volta ao catálogo da Netflix

Um dos melhores filmes das últimas duas décadas, volta ao catálogo da Netflix

Se não sabemos tudo o que se passa dentro de nossas próprias mentes, como podemos nos arvorar a tecer críticas sobre o que vai no pensamento dos outros? Christopher Nolan é tido como um diretor cabeça. “Amnésia”, lançado no já distante ano 2000, se presta a reconstituir um evento traumático na vida de um homem a partir de lembranças que nem ele mesmo tem mais. Christopher Nolan é um diretor muito cabeça — e “Amnésia” continua a ser um filme muito atual.

A estrutura de “Amnésia” é complexa, o filme é difícil, nada pasteurizado, nada padrão, muito pouco interessado em agradar gregos e baianos, ainda menos a qualquer custo. A partir de um mote o seu tanto inusitado, a trama, nascida de um conto de Jonathan, irmão de Nolan, desembarca no terreno do onírico tendo por condutor Leonard, um dos muitos tipos atormentados em que o diretor se especializaria ao longo da carreira em pérolas como “O Grande Truque” (2006), “Cavaleiro das Trevas” (2008), “Interestelar” (2014) e “Tenet” (2020). O protagonista de “Amnésia” não se encontra exatamente privado de toda capacidade de arquivo biológico, uma vez que pode retornar a tudo o que houve: depois da investida violenta de um assaltante, sua mulher fora estuprada e morta. Ele também fora atacado, sobrevive, mas a violência dos golpes lhe deixou com um distúrbio neurológico severo. O que acontece com seu cérebro é muito pior que a amnésia sugerida no título, decerto um crasso erro de tradução: Leonard, talvez pela intensidade do choque — que se relaciona menos às pancadas que à constatação de que sua vida tomou um rumo que abomina —, esquece por completo de coisas que acabaram de ocorrer, o que o obriga a se valer de recursos os mais variados a fim de não permitir que algum indício que o leve ao assassino, identificado como John G, lhe escape. A obstinação por se vingar é tamanha que Leonard chega a tatuar no próprio corpo as informações mais relevantes que consegue sobre os delitos.

Considerando ser este um argumento não propriamente original, o que Christopher Nolan extrai daí é uma seiva preciosa. O emprego de arcos dramáticos como o amor romântico e sem conflitos, interrompido por um crime perverso sobre o qual seus sujeitos não têm nenhuma possibilidade de interferência, confere à história o poder de elaborar uma refinada metáfora acerca da fragilidade das relações frente ao mundo moderno, vil, corrompido por toda sorte de ganância, de inveja, de inconsequência, em que indivíduos tiram uns dos outros seu verniz de humanidade a fim de enxergá-los como presas, cuja destruição não há de fazer falta. “Amnésia” é a típica obra de arte confeccionada com o intuito primeiro não de espalhar beleza, tampouco divertir e muito menos sugar do espectador suas tantas e justas aflições, pelo contrário. Como o Sergei Eisenstein (1898-1948) de “Encouraçado Potemkin” (1925), o Luchino Visconti (1906-1976) de “Rocco e seus Irmãos” (1960) ou mesmo o Federico Fellini de “Amarcord” (1973), cinema para Christopher Nolan é uma arte séria, talvez a mais apropriada quanto a suscitar no homem a necessidade de questionamento, reflexão e, quiçá, solução de problemas os mais comezinhos, mas nunca sem importância, justamente por sua natureza imagética. Por meio de representações visuais esteticamente bem pensadas, bem construídas, filmes se tornam agentes imprescindíveis para um mundo menos funesto — ou que, ao menos, faça mais sentido.

Tendo por início o desfecho da história, “Amnésia” põe a cachola de quem assiste um bocado enroscada. A sequela da agressão a Leonard parece contaminar o público, dados os muitos detalhes do enredo que restam perdidos caso se suceda uma distração qualquer num momento crucial. Os diálogos jamais tomam corpo a esmo, tudo no filme parece milimetricamente estudado, não sobrando ao espectador outra alternativa se não agir como uma espécie de detetive e ajudar o combalido personagem central. Leonard se acha nas circunstâncias em que tudo se passa, e a cada três dias, aproximadamente, volta à cena algum fragmento apresentado outrora. Como já se conhece o encerramento da trama, nos cabe invetivar contra John G. quando Leonard executa seu carrasco, torcendo para que não acabe também ele mal.

A memória é a responsável por ligar os diferentes contextos da trajetória do ser humano ao longo de sua existência, ainda que, por evidente, não usemos todas essas informações ao mesmo tempo e uma boa medida delas permaneça completamente inutilizada grande parte de nossas vidas, mas como se nota o valor de determinado objeto no preciso instante em que já não podemos mais contar com ele, a todo homem deve ser assegurado possuir, no mínimo, suas lembranças, a ideia de que em alguma curva de nossa estrada o percurso nos foi leve. A Leonard até isso lhe negaram: tornara-se, a contragosto, pária num mundo que não consegue reconhecer, em que não se identifica, corpo que vaga oco sem um espírito que o preencha, sem futuro, como todos os mortais, mas igualmente sem passado, num presente que lhe é um estranho — ou mesmo um inimigo.

Se se preservasse o título pensado por Christopher Nolan para o filme, de um só golpe a produção conservaria também mais esse seu pormenor feliz e ainda se instruiria a audiência, ao lhe fazer a célebre advertência latina, o memento mori. Saibamos todos que nosso fim é irremediável e, a partir disso, vivamos do jeito mais extraordinário que pudermos.