O filme que vale a assinatura da Netflix

O filme que vale a assinatura da Netflix

Nunca é tarde para se fazer as muitas descobertas da vida, e quanto mais cedo, melhor. A despeito de um ou outro reacionário perdido em meio às incontáveis transformações de uma sociedade que não se sujeita mais a passar despercebida, o mundo evolui. E se o mundo progride, avança também, por óbvio, o cinema, ou por razões de natureza artística propriamente, ou ao menos para não amargar um insucesso de bilheteria atrás do outro.

Em 2017, o Oscar já surpreendera ao fazer uma porção de ressalvas a suas tantas premissas, rapapés e estamentos e ter conseguido enxergar a beleza e a relevância artístico-social de um filme como “Moonlight — Sob a Luz do Luar” (2016), de Barry Jenkins. Pretos, pobres, insignificantes — e gays —, seus protagonistas lutavam contra um amor a que eles mesmos relegaram uma aura de impossibilidade, ainda que todo o cenário para o caso amoroso estivesse dado: universos afins, trajetórias que se apartaram, mas que voltavam a se permear e, claro, o apetite sexual. Era inviável — e irracional — qualquer tentativa de se fechar os olhos a tamanha necessidade que certo grupo tinha de se comunicar, demanda que esfregava na cara de Hollywood. Deu no que deu: “Moonlight” conquistou três prêmios da Academia, inclusive o principal, de Melhor Filme.

Seria “Me Chame Pelo seu Nome” a versão branca, endinheirada, elitista — e igualmente gay — do filme de Barry Jenkins? Em se analisando somente o enredo da produção dirigida pelo italiano Luca Guadagnino, baseada na novela do ítalo-egípcio André Aciman, chega-se incontinente à dedução de que “Moonlight” de fato tinha muito mais bala no tambor, até por abordar uma pletora de temas espinhosos em qualquer contexto, seja num país extremamente rico e extremamente desigual (e me refiro aos Estados Unidos onde se passa a trama, frise-se), seja numa paragem idílica, parece que feita sob medida (só) para o deleite dos sentidos, como a região indeterminada de que se vale Aciman a fim de situar sua história — só se sabe que fica ao norte da Itália, particularmente ensolarado no verão, terra de pouquíssimos contrastes socioeconômicos entre a população nativa; é imprescindível o emprego do adjetivo, uma vez que imigrantes, pelos motivos mais díspares, ocuparam toda a Europa sem nenhum planejamento ou contrapartida financeira de seus países originários, o que daria outro artigo e se presta mais à narrativa de “Moonlight”.

A Itália no verão se traduziria no lugar perfeito para as descobertas de um garoto rico em férias, e descobertas nunca se dão sem boa dose de conflito. Em “Me Chame Pelo seu Nome”, o professor universitário Perlman, especialista em cultura greco-romana, recebe a visita de Oliver, estudante que se dispõe a ajudá-lo numa pesquisa. Oliver, bonito, sensível e noivo de uma moça, logo desperta o interesse de Elio, filho do professor Perlman, instantânea e assustadoramente magnetizado pela figura apolínea do discípulo do pai. Ao espectador, é sugerida a ideia de que Elio fora sempre um homossexual enrustido, sabe-se lá por quê — ou melhor, sabe-se perfeitamente —, que passara toda a sua ainda curta vida esperando por aquele momento, a visão reveladora de Oliver diante de si, o cheiro de seus cabelos rescendendo em toda parte, a tepidez do hálito do convidado se chocando contra sua boca. Tivesse Elio uns anos a menos, decerto seria acometido de uma espécie de transe, tão violento e descontrolado que excede os limites da psique e se derrama sobre o corpo, algo com a força de um ataque catatônico, a exemplo do que se passa em analepse com Salvador Mallo, protagonista de “Dor e Glória” (2019), vivido por Antonio Banderas no filme do espanhol Pedro Almodóvar. O grande enrosco do filme fora não exatamente com a crítica, tampouco com a audiência, mas com gente pronta a se arvorar em palmatória do mundo, ainda que incapaz de notar a sujeira nos próprios olhos: Elio era menor de idade e teria sido aliciado pelo coitado do professor Perlman a fim de servir de passatempo a Oliver, dominado pelo tédio. Tudo delírio, psicopatia, inveja. Perlman é um homem sensível, culto e, sobretudo, perspicaz, que certamente já se inteirara de há muito da condição do filho, sem a necessidade de consultar quem quer que fosse, nem a mulher, esposa devotada e mãe atenta. Talvez haja se dado com o mestre a iluminação que agraciara o filho, de outra natureza, claro. A chegada de Oliver servira para lhe dar a parcela de certeza que lhe faltava acerca de como o filho enxergava a vida e se via a si mesmo no mundo. O moço loiro balançava as estruturas daquela família, sem derrubá-las, se prestando a remover uma ou outra pedra solta e dar ao ambiente uma cara mais genuína, mais verdadeira.

O fato da trama se desenrolar no já distante 1983 não diz nada sobre a possível rejeição da família de Elio a Oliver, dada a aura de liberdade em seu estado mais sofisticado que paira ali. Esse coming of age, esse registro do amadurecimento de Elio, é o que predomina em “Me Chame Pelo seu Nome”. De forma alguma se pode atribuir à produção o rótulo de filme gay, queer drama, ou alguma nomenclatura que se lhe assemelhe. Aqui, é mesmo a suavidade o que prevalece. Sem julgamentos, sem neuroses, só para variar. Ninguém se atribui o direito de reprimir quem quer seja nessa espécie de paraíso pagão em que beleza estética e refinamento intelectual vão para a cama sem nenhum pudor. A narrativa pode até parecer meio arrastada em certos momentos, mas a beleza do enredo — e das paisagens — sufocam o bocejo do espectador, cujo queixo pode cair sem prévio aviso.

A Grécia Antiga provavelmente foi a única civilização na brevíssima história da humanidade tal como a sabemos em que a relação entre dois homens sempre foi, além de digna de todo o respeito, incentivada. Conscientemente ou não, o roteirista James Ivory, partiu desse argumento — e aqui tomamos por análise precisamente o comportamento de Perlman quanto a seu pupilo. O professor estaria em seu pleno direito se pensasse que Oliver abusou de sua hospitalidade, conspurcara a fidúcia que lhe devotava e cometera a maior falta que poderia. Mas Ivory — aos 89 anos, o indivíduo mais velho a ganhar um Oscar, o de Melhor Roteiro Adaptado, com toda a justiça, — sequer insinua tal disparate e segue o que se lê em Aciman até o desfecho do filme, igualmente genial ao transpor a história para os lendários anos 1980, nem tão libertários — e loucos — como os 1970 e os 1960 que lhe serviram de lição, mas longe do maremoto de caretice cretina que se desdobrara com a subida ao poder do canastrão Ronald Reagan (1911-2004), nos Estados Unidos, e ainda antes de Margaret Thatcher — sem dúvida, a melhor primeira-ministra que a Inglaterra já teve depois de Winston Churchill (1874-1965) — se reeleger, afirmar sua hegemonia e estender seus tentáculos sobre todo o Velho Mundo a partir do número 10 de Downing Street. Um mundo em que a sexualidade — e a homossexualidade, sobretudo a masculina — era muito mais vigorosa e muito mais ostensiva, reputação que a aids tratou de reduzir a pó em menos de uma década.

Todos sobrevivem em “Me Chame Pelo seu Nome”, Elio e Oliver não se tornam um casal, a vida continua. Mas o mundo, passados menos de 40 anos, é somente uma pálida lembrança do que foi. Ou do que poderia ser.