O melhor filme argentino da década está no catálogo da Netflix

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Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia que a vida era somente uma vontade de vida, isto é, existimos sob a forma de mera sondagem de nossos próprios desejos, em especial dos mais vagos, desconhecidos, sombrios. Para o filósofo polonês, autor de “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o homem não sabe dar azo às suas vontades, e não vai aqui nenhuma possível teoria de Schopenhauer acerca dos malefícios da autorrepressão. O homem não sabe querer porque, pelo simples fato de aspirar a alguma coisa, já principia a disseminar ruína por toda parte. Portanto, há que se renunciar a toda manifestação de se fazer qualquer coisa, mesmo — ou especialmente — as que, na aparência, induzam a imaginados bons propósitos, e tanto pior se aflorada de súbito, graças a um impulso, espasmo irracional da vontade ela mesma.

No discurso ácido com que “agradece” o Prêmio Nobel de Literatura com o qual é agraciado, Daniel Mantovani, em “O Cidadão Ilustre” alude ao paradoxo de estar ali. Trata-se da maior láurea com que poderia ser condecorado na sólida carreira, pontuada por todas as coisas com que um profissional — e sobretudo um artista — poderia sonhar: reconhecimento, sucesso, fama, badalação, fortuna. Todo prêmio é também uma sujeição a uma visão de mundo, a uma filosofia, a uma organicidade qualquer, ao dito sistema, e, por óbvio, ao dinheiro. Daniel exalta sua debacle, o fim de sua respeitabilidade como artista e como homem, ao constatar que sua obra chegara ao ponto máximo na medida em que se afina aos gostos e preferências — mesmo que puramente estéticas — de um monarca — ainda que exclusivamente simbólico. Só lhe resta o opróbrio e o ostracismo, e os dois se encarregam de achá-lo, primeiro este, e conforme a narrativa avança, também aquele.

Suas obrigações mais importantes são tornadas nulas, sobra um ou outro simpósio, uma ou outra palestra menos inexpressiva, e uma série de homenagens que o prefeito de Salas, justamente de Salas, houve por bem lhe dedicar. Daniel não está à beira da falência ou passando algum apuro de dinheiro, não se trata disso: o que o move é um misto de vaidade — porque, como ele mesmo reconhece, um escritor é feito de pena, papel e vaidade —; orgulho por, depois de haver desdenhado do Nobel, sua cidadezinha ter se lembrado dele; e, quem sabe, alguma condescendência. Por mais que tenha vivido os últimos quarenta anos dizendo a si mesmo que seu passado o incomodava, de maneira consciente ou não embarca para a Argentina, sequioso por reencontrar esse passado. E o passado de fato permanece lá, mas diferente, como ele próprio. Como se Salas tivesse dedicado quatro décadas a fim de arquitetar uma vingança contra o filho ilustre, mas soberbo, uma sucessão de eventos começa a se abater sobre Daniel, primeiro apenas vexatórios.

O constrangimento logo cede lugar a situações que exigem dele posições mais duras, como artista e como indivíduo. O escritor é impingido a tomar parte em diversas polêmicas, ainda que involuntariamente em algumas circunstâncias, e sua permanência na cidade natal se torna insustentável. O sermão (mais um) com que ataca as “autoridades” salenses, inclusive um autoproclamado artista plástico, presidente de uma associação de classe, que manipula o resultado de um certame de pintura que recusara seu quadro a fim de ser um dos vencedores, é, já faltando pouco mais de vinte minutos para o encerramento, o ápice do enredo. Sua forma de compreender a política, a arte, a cultura — palavra que lhe provoca asco —, são lições de vida para qualquer um, a despeito da época em que se esteja, num roteiro que demanda alguns retoques.

O pensamento de Daniel, por absurdo que pareça, se harmoniza à perfeição com o de um filósofo da mais refinada extirpe, este do mundo como se nos apresenta (e nunca nos representa). À primeira vista, Roger Scruton (1944-2020), um verdadeiro lorde inglês — e cavaleiro da rainha Elizabeth II, logo, detentor da prerrogativa de acrescentar o etéreo sir, indicativo de nobreza, antes do nome —, poderia execrar o autor fictício, dado o conservadorismo beatífico com que se tornara célebre em Europa, França e Bahia. A cosmovisão do argentino acerca da arte, em particular da cultura, é exatamente o que argumenta Scruton em “Aesthetics of Architecture”, publicado em 1979; “Como Ser um Conservador”, lançado em 2014; e “Fools, Frauds and Firebrands: Thinkers of the New Left”, vindo à lume em 2015, por exemplo, e os dois últimos ressaltam o componente político da questão: intelectuais de esquerda são detratores e vândalos de grande parte do que a humanidade conseguiu erigir de mais sublime. Arte, para Daniel e Scruton: 1) não são para qualquer um; e 2) não tem de servir a propósitos edificantes de nenhuma outra natureza que não a estética. A arte também não deveria se prestar a trampolim ideológico, político ou egoístico de ninguém, por mais bem-intencionadas que sejam as premissas, e assim o é apenas para o pensador inglês, que se respalda em Schopenhauer. Tal objeto é o mais elementar, ao mesmo tempo que o mais complexo, distorcido e, por essa razão, o mais perigoso. Nesse ponto, fantasia e vida real se chocam.

No surpreendente final, Gastón Duprat e Mariano Cohn, diretores do longa, apresentam a remissão do personagem, à guisa de revanche contra tudo o que passara quando de sua estada em Salas. Os repórteres que se acercam dele na coletiva em que anuncia a publicação da mais recente novela, inspirada na experiência literalmente dantesca a que se obrigara, como Dante Alighieri (1265-1321) em “A Divina Comédia”, que se foi conhecendo entre 1304 e 1321, tomam-no como uma espécie de santo, verdadeiro cordeiro de Deus que se deixa imolar a fim de expiar os pecados, a ignorância, a mediocridade, a feiura do mundo. A certa altura do filme, Daniel dissera textualmente que um escritor é feito de pena, papel e vaidade, lembram? Custou um preço alto, é inegável, mas no fundo ele sabia exatamente aonde queria chegar — mesmo que tenha, outra vez, deitado fora seus princípios.