Sempre desconfiou do homem que chama sua mulher de princesa. Para ela, recorrer a um substantivo tão batido era pura incapacidade de encontrar atributos na parceira e revelava um certo desleixo e pouca importância com o relacionamento. Ela definitivamente não era uma princesa, não beijava e tampouco engolia sapos. Por isso, estranhou quando ele a chamou de princesa e ali, ela não tinha dúvidas, era o começo do fim.
Princesa, por quê? Porque ele sabia que este era um sinal inequívoco de que não haveria mais chances para os dois. Conhecia bem a mulher com quem vivia na última década e tinha certeza de que ao ser chamada de princesa ela saberia que o casamento chegou a uma rotina tal que já não o inspirava sequer a buscar maneiras de agradá-la. Ela então teve a certeza de que aquela rotina era movida por um único combustível: o patrimônio do casal. Ela não era princesa, mas herdou do pai uma pequena fortuna que investiu na construção de uma bela casa e na rede de pizzarias que abriu com ele. Como dividir o patrimônio?
Todo o investimento financeiro foi feito por ela. Então nada mais natural que ela ficasse integralmente com o patrimônio. Certo?
Não necessariamente. No caso das pizzarias 90% do trabalho foi ele que empreendeu, fazendo multiplicar o que antes era apenas um restaurante. Era justo que ele ficasse com parte do que ajudou a multiplicar.
Mas ele não pensava assim. Para ele, o justo era que a maior parte do patrimônio ficasse em suas mãos porque caso contrário seria necessário vender o que construiu para repartir no divórcio.
Aquela situação vinha se arrastando há tanto tempo que as conversas eram cada vez mais escassas. E então ela se refugiava nos braços de Guy de Maupassant que naquela noite lhe entregou um conto que a fez sorrir da situação. Afinal, não era um problema de pizzarias, mas de casais e divórcios financeiros que atravessam o tempo.

“Santo Deus! Se eu tivesse aqueles dois milhões e quinhentos!”
Meu quarto era lúgubre, um desses quartos de solteiro de Rouen arrumado por uma doméstica encarregada também da cozinha. O senhor vê bem, esse quarto! Uma cama grande sem cortinado, um armário, uma cômoda, um lavabo e nada de lareira. Roupas em cima das cadeiras, papéis pelo chão. Pus-me a cantarolar, num estilo café-concerto, já que de vez em quando frequento esse tipo de lugar:
Dois milhões,
Dois milhões
Que bom faz aos corações
Com quinhentos mil
E uma mulher gentil.
Na verdade, eu não tinha pensado ainda na mulher, e foi o que fiz de repente, enquanto me metia embaixo das cobertas. Pensei tanto que custei a pegar no sono.
(…)
Todos os incômodos, todas as minhas pequenas misérias das quais sofria ininterruptamente sem prestar atenção, sem me aperceber, fustigavam-me agora como picadas de agulha, e cada um desses pequenos sofrimentos me fazia pensar na moça dos dois milhões e quinhentos.
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