Quando músicos se tornam escritores

Quando músicos se tornam escritores

Em 2015, a academia sueca deu uma alfinetada no mundo literário ao anunciar o Prêmio Nobel para o compositor Bob Dylan. O monstro do folk rock ganhou a dádiva reservada apenas aos escritores. Reapareceu a polêmica sem solução, no estilo “ovo e galinha”: letra de música é ou não é poesia? O planeta Terra vai explodir um dia, daqui a milênios, porém não se terá um veredito final (transitado e julgado) sobre o tema.

Diante da surpresa, a porta-voz da academia sueca Sara Danius lembrou a importância da “voz” e “letra” em Dylan, associando seu nome aos autores da antiguidade e aos trovadores. “Se olharmos milhares de anos para trás, descobriremos Homero e Safo. Eles escreveram textos poéticos feitos para serem escutados e interpretados com instrumentos. O mesmo acontece com Bob Dylan. Pode e deve ser lido.”

O fato é que mais e mais músicos (homens e mulheres) têm se aventurado no campo das letras. Invadem o jardim sagrado dos escritores e lançam seus livros. Os intrusos e as intrusas arriscam-se em memórias, romances, poesias, roteiros de cinema. Os resultados obtidos são muito surpreendentes, deixando até críticos literários renomados de queixo caído, no sentido positivo da expressão.

Um dos melhores exemplos é a cantora norte-americana Patti Smith, já em sua quarta incursão pela prosa. No livrinho “Devoção” (2017), por exemplo, ela colocou a questão filosófica de quem decide enfrentar a síndrome do papel em branco: “Por que alguém se sente compelido a escrever?”. Dúvida ainda mais profunda para uma pessoa que vem da área musical, tem nome consagrado e decide tomar riscos.

A resposta de Patti parece que começou a ser dada sete anos antes ao lançar seu primeiro livro em prosa, “Só Garotos” (2010). Memórias de quem que viveu com intensidade o mundo da vanguarda da arte pop e do punk a partir dos anos 1970. Era uma jovenzinha que se mudou para a Nova York suja, degradada e cheia de gente interessante: Andy Warhol, Lou Reed, o pessoal do teatro alternativo.

Sua casa era o lendário Chelsea Hotel, onde morava com o marido Robert Mappelthorpe. Ele foi um fotógrafo que chocou meio mundo com imagens sadomasoquistas e morreu tragicamente de Aids. No relacionamento vanguardista, Patti tinha liberdade para ter suas experiências. Foi quando conheceu o dramaturgo Sam Shepard, certamente sua alma gêmea na vida, como fica claro em “Só Garotos” e “O Ano do Macaco” (2019).

“Precisamos escrever, mas não sem um esforço consistente e não sem uma dose de sacrifício: para dar voz ao futuro, revisitar a infância e para dar rédea curta às loucuras e aos horrores da imaginação antes de oferecê-la a uma vibrante raça de leitores”, diz em “Devoção”, no capítulo em que descreve sua visita à casa do escritor Albert Camus. A relação de Patti Smith com a palavra é cada vez mais profunda.

Rock literário

Nos dias de hoje, os livros de Patti só têm paralelo na qualidade da escrita com o inglês Morrissey (ex-vocalista do The Smiths). Filho de um zelador de hospital e de uma bibliotecária, Morrissey (ou Moz) nasceu na família de irlandeses de classe média baixa que cultuava o escritor Oscar Wilde. Sempre usou palavras sofisticadas da língua de Shakespeare para desdenhar da vida inglesa em suas canções.

Em 2013, Morrissey lançou o livro “Autobiografia”, que deixou maravilhado o maior crítico inglês (Terry Eagleton) e foi lançado ironicamente na coleção de clássicos da Penguin. Menos compreendida foi sua estreia no romance, com “List of The Lost” (2015). Com tanta crítica negativa, ele pode cantar finalmente o refrão de sua música: “Agora eu sei como Joana d’Arc se sentiu, enquanto as chamas subiam até seu nariz”.

Nick Cave

Outra figura central do “rock literário” é o australiano Nick Cave. Seus romances são “And the Ass Saw the Angel” (1989) e “A Morte de Bunny Munro” (2009), tendo este último uma tradução no Brasil. Nick criou a história de um sujeito mulherengo que fica viúvo e sai em viagem com o filho pelo interior da Inglaterra. Também curioso é o prefácio que ele escreveu para uma edição do “Evangelho Segundo São Marcos”.

Aventura recente foi o romance “A Era da Ansiedade” (2020), de Pete Townshend, famoso guitarrista do grupo The Who. Aos 76 anos, ele criou uma história com personagens no mundo do rock inglês entre os anos de 1996 e 2012. Trata-se de um músico acostumado a fabular, a ter uma imaginação sem limites. Pete compôs na virada dos anos 1960 para os 70 as óperas-rock “Tommy” e “Quadrophenia”.  

“[Ele] conduz a narrativa com a precisão de um escritor experiente. Vislumbra-se em alguns trechos a influência de seus conterrâneos contemporâneos, os infalíveis [Ian] McEwan e [Martin] Amis da vida, mas, na maior parte das páginas, ele nos surpreende com uma escrita original, dotada de um toque inédito de realismo mágico britânico com aura junkie”, analisou Tony Bellotto, também romancista e guitarrista dos Titãs.

Versão brasileira

Bellotto vem consolidando há anos uma carreira de escritor policial. A influência de Rubem Fonseca é evidente. O toque pessoal está nas narrativas ágeis e na proximidade com a linguagem do cinema, como atestam os quatro livros com o personagem do detetive Bellini. No ano passado, saiu o romance “Dom”, sobre um jovem que vira grande assaltante. O livro foi adaptado para o formato de série na Amazon.

Tony Bellotto

Quem melhor fez a metamorfose de músico para escritor foi Chico Buarque. Cancionista de mão cheia, ele invadiu o quintal da literatura em 1991, com o romance “Estorvo”. Poucas pessoas entenderam aquela narrativa violenta e vertiginosa. Causou muito ciúme entre os escritores brasileiros. Mas o reconhecimento ocorre até no exterior, como mostra a análise de “Budapeste” pelo crítico Héctor Hoyos no livro “Beyond Bolaño”.

No universo do pop rock do Brasil, o nome maior é sem dúvida o de Arnaldo Antunes. Desde os tempos dos Titãs, seus livros de poesia mostravam um escritor bem formado. Músicas como “O que” carregam a herança dos poetas concretistas (irmãos Haroldo e Augusto de Campos), com quem Arnaldo dialoga intensamente. Em 2021, veio mais um livro de poesia, “Algo Antigo”, desta vez centrado na urgência do tempo da pandemia.

Alguns livros de cancionistas brasileiros merecem ter público mais amplo. Compositora de língua afiada, Adriana Calcanhotto escreveu “Saga Lusa: O Relato de Uma Viagem” (2008), no qual relara os acontecimentos de uma turnê portuguesa. No plano literário mais tradicional, Vanessa da Mata lançou “A Filha das Flores” (2013), um romance de formação de uma menina no interior do Brasil.

Mais escritor do que músico, Fausto Fawcett sempre deixou claro sua capacidade de imaginação. A música “Kátia Flávia” é uma criação pós-moderna, próxima do rap e da ficção científica. Essa mistura alucinada aparece nos seis contos de “Básico Instinto” (1992), também semelhantes às narrativas cyberpunk. O clima dos contos absurdos reaparece nos inclassificáveis “Favelost” (2012) e “Pororoca Rave” (2015).

A passagem mais extraordinária da música para a literatura foi o livro “Verdade Tropical” (1997), de Caetano Veloso. O compositor baiano construiu o tão esperado “romance de geração”, ao contar sua história de juventude em Santo Amaro da Purificação, o exílio político em Londres no começo da década de 1970 e os bastidores do mercado musical. São memórias com alto teor literário, mostrando que músicos fazem sim poesia.