Gabinete do amor

Gabinete do amor

Notícia boa se criava. Nos últimos tempos, prestava-me a certos monoelismos. De me pegar escrevendo poesia. De cogitar brincadeiras com os barros da minha meninice. De encardir a roupa com terra. De tomar ralhos da chuva. De escutar de novo a minha jovem mãe gritando pela janela sai-da-chuva-menino-que-você-vai-se-gripar. Nunca mais me gripei por inocência. De repente, a grife dos animais alados voltava a me interessar sobremaneira. Borboletas albinas. Passarinhos acrofóbicos. Abelhas diabéticas. Marimbondos de xilocaína. Apesar de pobre, a rima com dor parecia nobre e fazia, enfim, um melhor sentido. Deixara de ser dormente. Eu sentia. Eu consentia sentir, movido por um retrocesso emocional fabuloso. De lustrar um poema sujo com um tapete voador. De sugar uma jugullar só para me alimentar de lira. Fazia tempo que eu não voava. Aquele ar avoado, todavia, não se mostrava mais preocupante durante a Hora do Ângelus. Havia sarcasmo de sobra na minha falta de fé. Ajoelhava-me, mas, era para beijar um ventre. Depois, se via. Depois, se garantia uma vaga no céu da sua boca. Incumbia-me de manoelismos maneiros que tiravam o peso das minhas costas, sem que sequer eu me apercebesse. Se desse, eu dançava. Se eu dissesse, você não acreditava. De fazer dublagens no chuveiro com uma escova de dentes. De aprender o idioma francês só para plagiar Baudelaire. De enxergar corpos tesudos nas nuvens de um céu encoberto. Entendi que tempo ruim era quando não chovia. Era quando não lhe devorava com requintes de algodão doce. Aprendi que a vida se comia pelas beiradas. Fazia aquilo para renegar a imortalidade. Apostava que era chama. De batizar um filho com o nome de Vinicius. De me casar nove vezes. De pedir perdão nove vezes e cair fora. De morrer nove vidas em prol de uma nascente de água límpida. De ensinar os tolos a plantar os seus olhos sobre as terras de cultura. De ler livros como se fosse cegar na manhã seguinte. De viajar a Paris só para me atirar da Torre Eiffel e planar em arcos de triunfo sobre uma turba de mortais boquiabertos. De voltar a viver de favor num barraco improvisado que ficava nos fundos de mim mesmo. Eu, um homem simples que padecia de excessos de urbanidade, um sujeito cheio de pensamentos irrequietos até a tampa, um hipocondríaco contumaz que zanzava aflito por causa da fobia por seres humanos. Praticava manoelismos calcado em projetos de exequível simplicidade. Contava que aquilo não fosse outro fenômeno efêmero. O maior pecado era não deixar rolar. O pior equívoco era procrastinar a vida ao lucubrar sobre como seria a vida depois que a gente morresse. Mas, a gente não morria. Não daquela vez. Não tinha jeito. Religião nenhuma me aceitava. Viver numa metrópole parecia tão caótico quanto um formigueiro. A diferença era que as formigas se entendiam; os meus neurônios, não. Sinapses agiam como fios desencampados. As minhas antenas já não captavam para onde ir. Podia ser que eu ficasse. Podia ser que eu fosse. Podia ser que tudo terminasse em pizza de banana-com-canela ou nos labirintos ingênuos da minha infância, quando tudo, literalmente, tudo acontecia por acaso. Nada se travestia de mistério, a não ser, a puberdade que gatinhava quietinha, escondida nas minhas gônadas. Vivia-se por inércia, sem planos mirabolantes. Alguma coisa de passarinho que tem medo de altura, de rio que sente frio, de chuvisco choramingando no pomar, se é que me entendem.

*Para Manoel de Barros