Desconfiava que levava uma vida deprimente

Desconfiava que levava uma vida deprimente

A mulher sem defeitos era branda no tratar, serena, e como ele meticulosa e metódica. O apartamento impecável, cada coisa no seu devido lugar. E a rotina? A rotina era o ponto alto. Todo dia ela fazia tudo sempre igual. Mas faltava vida naquela rotina. E faltavam livros. Ele, que crescera numa casa onde a estante do pai acomodava lado a lado Machado de Assis, Guimarães Rosa, Gore Vidal e os poemas de Gabriela Mistral, Cecília Meirelles e tanta gente cheia de vida e histórias, sentia falta de boas companhias.

No apartamento não havia um livro sequer. Desperdício de dinheiro, acúmulo de poeira, um trabalho desnecessário na opinião dela que ele acatava resignado e mudo. Entre ambos, não havia rusgas, viviam placidamente numa tranquilidade de lagoa, mas sem verdades. Dizer o que pensavam um ao outro poderia colocar toda essa paz em risco.

Ele tentava desviar o pensamento do futuro deprimente que o aguardava, extensão do cotidiano presente, sem desejos, sem sentimentos, sem dores e sem alegria.

Concentrava-se na felicidade que era ter um casamento em que as finanças estavam em ordem, as viagens eram cuidadosamente planejadas, sem surpresas que comprometessem as finanças do casal, sem gastos excessivos e com pouco vinho. Essa era outra virtude da mulher, não bebia. Seus prazeres gastronômicos eram limitados a um hambúrguer com refrigerante diet. Econômica, ela fazia o pé-de-meia para aposentadoria.

Essa vida era a recompensa por investir na segurança. Aprendera na faculdade de economia que a vida era um eterno trade-off, ou, como dizia a poeta, ou isto ou aquilo.

Não havia sonhos fora do trivial da mesquinha vida terrestre. Daí sua desconfiança de que levava uma vida deprimente. E como era sem sal aquela crepioca toda manhã de domingo.

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