Meu grito fake de Arquimedes

Meu grito fake de Arquimedes

Hoje sei que a ideia não é original. Aliás, quem pensa ter uma ideia original, possivelmente, esteja mal-informado. Quase tudo já foi pensado, quase tudo já foi dito. Embora nem quase tudo fosse ouvido e muito pouco captado. Eu estava mal- informado quando, na minha adolescência, imaginei ser original a ideia do mundo semelhante a um imenso relógio. Em meu íntimo, Arquimedes gritou: eureca! A ideia não tem nada de original, mas ainda hoje me fascina. Faça a experiência. Feche os olhos, desfaça-se dos sentimentos práticos e das tarefas utilitárias, que embaçam nossa visão das coisas essencialmente inúteis, e imagine o cosmos, o universo, como um imenso relógio metafórico.

Concentre-se na Lua, com seus vários movimentos ao redor do nosso planeta. Ela nunca se afasta em de demasia, nem se aproxima em excesso. Fica ali, eternamente nos comboiando, feito uma arandela no bojo azul do céu, a fornecer-nos o calendário das florações, dos ninhos dos pássaros, dos carunchos dos bambus, dos ciclos menstruais, do calibre das marés, além, é claro, da luz romântica que nos inspira a namorar. Além de despertar nos astronautas o desejo de deixar na poeira selenita, as marcas de suas próprias botas.

Depois, pense no Sol, esse palito de fósforo gigante que arde sem cessar, formando um campo de força gravitacional, enquanto proporciona energia e ânimo a todos os seres em nosso torrão. Imagine os demais planetas, uma chusma de mariposas ansiosas por luz, tais qual a Terra, rodopiando, como dervixes tradicionais, em roda do sol, num movimento coreografado, aproximações, distanciamentos e pegadas. Numa dança em que não há uma queda, um tropeção, um deslize sequer. Tudo harmoniosamente bem conduzido. Pense nas luas que ornam os dias e as noites desses planetas, como Júpiter, o gigante gasoso, que, se os astrônomos não erram nas contas, tem 79 luas semelhantes à nossa.

Depois, sem perder a concentração, vá expandindo seu campo imaginado. Espalhe seu pensamento pela Via Láctea, essa réstia em espiral de objetos celestes onde nosso sistema solar abriga-se. Imagine os cerca de outros 400 bilhões de rubis, os sóis de cada sistema, semelhante ao solar, verdadeiro latifúndio de estrelas e astros, tudo rodando perfeitamente, com suas alavancas, suas correias, suas correntes, suas roldanas, catracas e coroas desdentadas. Adicione ainda os cometas vadios, os asteroides desastrados e as radiações trespassantes. Pense nas coisas quânticas que a mente humana ainda não conseguiu alcançar. Afinal, no dizer de Carl Sagan, cosmos é “tudo o que já foi, tudo o que é e tudo o que será”. 

Sem perder de vista a Via Láctea, adicione outras galáxias a seus objetos e mecanismos semelhantes. Forme um sanduíche com elas, ou um quadrante universal. Mais outro e outro mais. Escolha se seu universo é finito ou sem fim. Se for sem fim, coloque uma limitação convencional, um recorte cosmológico.

Pegue toda essa complexidade astronômica, azeitada e operante, e acondicione-a nas bordas do infinito — a caixa de seu relógio imaginário. Não tenha pudor de exercer as arbitrariedades imaginativas. Afinal, o mecanismo é seu, a caixa é sua. Você está no terreno puro da íntima jurisdição. 

Instale a coroa de acionamento e ajuste  do grande mecanismo. Os botões que comutam as funções nos submostradores. Prenda o mostrador, os ponteiros, o cristal. Atarraxe o bisel, emoldurando o cristal e o mostrador, como um horizonte visível, onde estão instalados os fusos horários. Pense o mostrador como sendo nossa Terra, o lugarzinho frágil e ameno em que habitamos no universo.

Achando-se o relógio em perfeita ordem, adicione-lhe a gonda, ou pulseira, e pendure-o no braço do mistério desabrido. E assim você terá o entendimento metafórico e o controle mental sobre o cosmos.

Simples como um relógio de pulso.