Joelmir Beting: o simples sofisticado

Joelmir Beting: o simples sofisticado

Ao lado de Paulo Henrique Amorim, Marco Antônio Rocha e Lillian Witte Fibe, o paulista Joelmir Beting (1936-2012 — viveu 75 anos) brilhou no jornalismo de economia da televisão brasileira — e se tornou um rei sem sucessor (há, talvez, uma rainha — Mara Luquet). Como entendia mesmo do metier, com capacidade para discutir com qualquer economista chicago-boy, Joelmir não dava palpite. Suas análises eram precisas e não estavam a serviço de bancos, financeiras e governos. Eram autônomas. O comentarista tinha a capacidade, rara, de tornar o difícil mais fácil, sem que o tema discutido perdesse sua complexidade. O jornalista Ricardo Boechat o definiu bem: “Um cara que transmitia bagagem sem pretensão”. Quase nove anos depois de sua morte, sai, finalmente, uma biografia: Joelmir Beting — O Jornalista de Economia Mais Influente da História do Brasil (Beting Books), do jornalista e professor universitário Edvaldo Pereira Lima.

Numa magnífica entrevista ao jornalista Leandro Haberli, do Portal Imprensa, o biógrafo Edvaldo Pereira Lima sugere que Joelmir, como jornalista, era mais ouvido e, por certo, acatado do que ministro da Fazenda ou do Planejamento. Há ministros que querem mais confundir — às vezes para iludir — do que esclarecer. Então, Joelmir examinava a lorota e dizia que o plano poderia, digamos, prejudicar a sociedade. O rei, portanto, ficava nu. Ele era o sorriso da sociedade e a cárie do poder. Nunca aceitou a ideia de que o jornalista é um mero datilógrafo das ideias de ministros, empresários e economistas. “Competia”, em alto nível, com vozes autorizadas do pensamento econômico do país.

A biografia é autorizada — encomendada — pela família de Beting, mas “não é”, postula seu autor, “uma história chapa branca”. “É uma história humana. Contada por muitas vozes, vista por muitos olhares, e não só os da família.”

Notável intérprete do Plano Collor

Joelmir Beting — O Jornalista de Economia Mais Influente da História do Brasil (Beting Books), do jornalista e professor universitário Edvaldo Pereira Lima

No governo do presidente Fernando Collor de Mello, o impoluto que se revelou uma empulhação, um grupo de economistas, capitaneados por Zélia Cardoso de Mello — a amiga do então ministro da Justiça Bernardo “Bésame Mucho” Cabral —, criou o chamado Plano Collor. Entre as várias diatribes, o governo bloqueou e confiscou o dinheiro das pessoas que estava depositado nos bancos. Vários indivíduos e empresas quebraram. Com nariz empinado, o rei das Alagoas nem quis saber: as vidas secas das pessoas não eram de seu interesse. Ao comentar o desastre cometido por uma espécie de Simão Bacamarte que escapou da Casa Verde, no dia 16 de março de 1990, Joelmir se apresentou estupefato, quase em choque. Tanto que, relata Edvaldo Pereira Lima, sua “cara de perplexidade… foi manchete do prestigiadíssimo ‘Jornal do Brasil’: ‘A cara da nação’”. Com cacófato — “da…nação” —, mas a tradução precisa do que havia acontecido. Numa entrevista à excelente revista “Imprensa”, anos mais tarde, o jornalista esclareceu a cena: “Não era cara de espanto. Era de pavor”. Lembro-me que meu pai, Raul Belém, me ligou, depois de ouvir Joelmir (que admirava), e disse: “Collor é o novo Jânio Quadros. Ele vai cair. Anote”. Anotei nos meus vários cadernos-diários.

O jornalista sabia que, com sua equipe incompetente, que não compreendia o Brasil nem sua conexão com o mundo, Fernando Collor estava levando o país para o fundo do poço. Felizmente, dada a gula pelo dinheiro público, o presidente sofreu impeachment e assumiu um gestor sensato, Itamar Franco, que soube convocar a equipe econômica que elaborou o Plano Real e estabilizou a nação.

Edvaldo Pereira Lima se diz integrante da tribo dos “caçadores de compreensão” e, por isso, busca os “múltiplos níveis de realidade que constituem uma história de vida”.

Joelmir tinha defeitos, é claro, como todos os seres humanos — uns mais, outros menos. É a soma de tudo, com as contradições e ambiguidades, que faz um personagem ser mais bem compreendido. O defeito mais grave do indivíduo Joelmir era ser torcedor do Palmeiras. Não por ser também o time de devoção do presidente Jair Bolsonaro. Na verdade, se torcesse para o Santos, clube de minha devoção — quase não leio sobre o escrete de Pelé e Coutinho, porque se trata de um troço sagrado, praticamente intocável —, Joelmir teria sido perfeito.

Escrever fácil sobre o difícil — economia é um assunto em geral complexo — era o objetivo, bem-sucedido, de Joelmir. Qual era o seu segredo? “O segredo estava no uso de metáforas e analogias acoplado ao ritmo narrativo que empregava com um ligeiro toque até mesmo poético”, anota o biógrafo. “Joelmir era um storyteller. Um habilidoso contador de casos, tanto no jornalismo, quando na sua atividade de palestrante brilhante que também foi, usando-os como ilustração das análises, dos conceitos, dos raciocínios, das teses que desenvolvia para interpretar a economia.”

Joelmir era um ás da comunicação. Comparando um aumento estratosférico de medicamentos para seres humanos e um aumento menor do preço de medicamentos veterinários, o jornalista disse: “Se você entrar na farmácia falando, vai pagar 10 reais; se entrar latindo, vai pagar cinco”. Todo mundo entendeu, e, apesar da raiva, percebeu que só o humor salva… se salva.

Ao comentar um simpósio de saúde veterinária, Joelmir publicou uma nota que ilustra sua criatividade: “Gripe aviária na empada, peste suína na porcada, febre aftosa na boiada. A carne é realmente fraca. E a defesa sanitária das nobres proteínas animais, mais fraca ainda. Com direito a greve abusiva de inspetores e a corte suicida de dotações. O orçamento da defesa animal para este ano ficou um terço abaixo do minguado orçamento do ano passado”. Com acerto, o biógrafo diz: “Simples assim, genial assim”. Poderia ter acrescentado: Joelmir era capaz de criar o simples sofisticado. Sua prosa era de escritor consumado — artista da elaboração e, ao mesmo tempo, da contenção. A precisão de seu texto excluía as, digamos, “gorduras”.

Pelé não era do Santos; na verdade, o Santos era de Pelé. Seus jogadores apreciavam reinar no Maracanã — o palco que iluminava o talento deles para todo o Brasil — e, lá, Pelé era o Super Rei. “Foi por isso que um dia driblou quase todo o time do Fluminense, marcando um gol de feitura de arte. Isso deu origem ao chamado Gol de Placa, cuja história tem a ver com Joelmir”, relata Edivaldo Pereira Lima. Alegando que não é adepto de “spoiler” (eu sou inteiramente a favor), mais não conta.

Por ter começado a carreira de jornalista como repórter esportivo, trabalhando ao lado de dois Homeros — o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues e Armando Nogueira —, aprendeu a escrever com clareza, beleza e rigor. “Seu Gol de Placa foi migrar para o jornalismo de economia com assinatura própria, essa semente criativa do texto elaborado na correria instantânea do jornalismo com um toque de artista das metáforas e analogias”, narra o biógrafo.

Joelmir brilhou na “Folha de S. Paulo”, em “O Estado de S. Paulo” e nas redes Globo e Band. “Nunca vi o Joelmir falar alto, bater o telefone, gritar um palavrão”, disse Ricardo Boechat.