O Iluminado: a comédia que você não viu

O Iluminado: a comédia que você não viu

“Here’s Johnnnnny!”, ou, alguns segundos antes, a fábula do Lobo Mau e os Três Porquinhos, sussurrada a uma apavorada Wendy que teima em não abrir a porta: se você achava que estas cenas eram um alívio cômico em meio a tanto horror e sanguinolência em “O Iluminado”, redimensione suas perspectivas. Na verdade elas dão o tom do filme inteiro.

Claro que o restante das cenas, se não chega a essa sintonia fina de sarcasmo, está inteiramente alinhado a ela. Em maior ou menor grau é o humor negro, e não o terror, que fornece o registro da obra. Ou você deixaria de rir de um pacato escritor que, ao aceitar a incumbência de zelar de um hotel durante seis meses em busca do ambiente perfeito para escrever seu livro, e ouvir que o zelador anterior — vítima da síndrome do confinamento — esquartejou a família, diz que considera aquele plot manjado e que obviamente com ele aquilo jamais iria ocorrer? Vai dizer que você não achou uma piada o fato do escritor — que no decorrer do filme descobrimos não ter o menor talento para a escrita — colocar sempre a culpa na mulher e no filho por não conseguir produzir uma mísera linha? (O “Muito trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um otário” datilografado milhares de vezes é a cerejinha do cupcake). Tem mais: a lengalenga de autocomiseração que Jack desfia diante do barman Lloyd —“Ah, como eu sou um injustiçado; Ah, como minha mulher pega no meu pé; Ah, como aquele pirralho atrapalha minha vida” — é a prova de que sujeito não passa de um crianção estacionado nos treze anos de idade.

O próprio Kubrick, em entrevista a Michel Ciment, havia dado a dica: Jack Torrance é oficialmente o zelador do hotel, mas todo o trabalho adulto — a supervisão e manutenção das instalações, assim como o controle do estoque — fica a cargo da mulher. A ele cabe tão somente fazer hora na máquina de escrever, cochilar na mesa e eventualmente jogar squash consigo mesmo no saguão do hotel. Temos aí a parábola perfeita: a formiga laboriosa e a cigarra artista, que durante o inverno só sabe se lamuriar de que não lhe deixam fazer seu trabalho — sendo que desde o início ele conta com amplas e plenas condições de executá-lo. Mas é um incompetente, preguiçoso, postergador e reclamão de carteirinha: quer melhor personagem de comédia?

Daí para cair presa dos inevitáveis fantasmas do hotel e se deixar manipular facilmente é um pulo. A prova de que o filho Danny, de cinco anos de idade — e independente de seus dotes paranormais —, é um adulto comparado ao pai é que o garoto, ao deparar com os abantesmas nos quartos e corredores, primeiramente se intriga, depois resiste e até procura ajuda (telepática, que seja). Já Jack, no banheiro do salão de festas, é informado pelo espectro do antigo zelador que ele, Jack, é que sempre foi o zelador do hotel, e que é bom tomar providências, já que o filho “tenciona trazer alguém de fora para atrapalhar tudo”. Com o sorriso abobalhado, Jack abraça a missão e parte para a sanguinolência. Que moleque de treze anos, cansado de “não o deixarem fazer nada”, dispensaria aquele desafio?

Os toques finais da tragicomédia: o cavalheiro de black tie com a cabeça rachada brindando à saúde de Wendy, o blowjob que o sujeito fantasiado de urso careteiro pratica no outro cavalheiro deitado à cama, a perseguição no labirinto que culmina em Jack Torrance congelado, numa máscara bizarra que mistura claramente o Grand Guignol ao completo pastelão e, óbvio, a foto do baile em 1929 — a piada definitiva — onde vemos Jack congelado desta vez no tempo, no ambiente que sempre lhe será adequado: a festa, a esbórnia, a falta de compromisso. Seu sorriso dionisíaco mostra que no fim ele saiu ganhando, o safado.

As infalíveis cenas de horror — o sangue no elevador, a machadada em Dick Halloran, as garotas esquartejadas — é que dão o contraponto trágico à comédia, não o contrário. Ilhas de choque num mar de deboche. Mas não se espante. Stanley Kubrick sempre gostou de debochar.

Aliás, se você acha que a única comédia dele é “Dr. Strangelove”, sugiro uma revisão em toda a filmografia kubrickiana e mais atenção a cada detalhe. Vai ser fascinante.