A obra-prima de Ian McEwan

A obra-prima de Ian McEwan

Ver com os próprios olhos é o suficiente para sabermos a verdade sobre um acontecimento? Talvez seja essa a questão de fundo em Reparação (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henrique Brito), obra do escritor inglês Ian McEwan. Quatro centenas de páginas demonstram que a resposta não é nunca tão óbvia quanto um “sim”, uma vez que a imaginação deve ser considerada; ela reage com os sentidos e influencia poderosamente nossa percepção da realidade. Outra questão implicada, tão importante, diz respeito ao inerente poder da ficção, e ambas as questões provam o quanto o termo “romance” vai muito além da compreensão vulgar. Define um campo tão abrangente da experiência humana que não tem nada a ver com aquela percepção, atrelada a um único sentimento.

De maneira direta ou indireta, é certo que uma relação de amor sempre interessa à ficção, motivo que transcende o domínio do romance enquanto gênero literário. O amor é um importante elemento de atração tanto para novelas quanto para o cinema, a música, a dança, e naturalmente porque é universal. O problema nem é o amor, em si: é a suposição, contra qualquer evidência, de que toda relação entre casais é “romântica”. O é até certo ponto; em geral corresponde a apenas a um estágio, tratando-se na verdade de uma das inúmeras dimensões desse consórcio entre adultos. Em “Reparação” o amor, com sua conotação erótico-sexual, importa bastante, mas o interesse da trama gira principalmente em torno das consequências do “ressentimento” por parte de uma terceira pessoa envolvida, Briony Tallis. Além dela, que é a protagonista, um segundo núcleo tem importância dramática, formado por Cecília, sua irmã mais velha, e Robbie Turner. Todas as demais pessoas envolvidas parecem ser acessórias. A história contada na primeira parte do livro (de um total de três) se passa em um dia de 1935, numa propriedade na área rural do condado de Surrey, Inglaterra. É subdivida em 14 capítulos.

Briony é uma adolescente superdotada, que depois torna-se gente grande para responder por seus atos infelizes. Por sua causa a irmã Cecília e o namorado Robbie Turner acabam separados. Em metade do livro a responsável pela intriga que destrói duas vidas tem apenas 13 anos de idade. Tão nova e já é dramaturga; possui um temperamento racional e é obcecada pela organização. Acabara de escrever sua primeira peça de teatro, “Arabella em Apuros”, e planeja encená-la para o irmão Leon, que retorna ao lar no dia seguinte. Um jantar será oferecido a ele. Briony tem apenas 24 horas para ensaiar, e para isso escala os três primos menores que acabam de vir morar em sua casa, Jackson, Lola e Pierrot. O trio é prontamente incumbido de interpretar os personagens do melodrama.

Até o quarto capítulo, temos Briony envolta pela tensão entre fantasia e realidade, sob as metáforas de casamento (ordem) e divórcio (desordem). Dessa forma McEwan prenuncia o drama real que se desdobra aos poucos, nos quais Cecília e Robbie são trazidos à luz. Paralela às cenas fictícias (e inocentes) do melodrama “Arabella em apuros”, que Briony precisa dirigir, a vida se desenrola em seu entorno, e uma importante cena real acontece; uma das quatro cenas reais que a pequena escritora testemunha, envolvendo a irmã Cee e Robbie Turner. Vista pela janela de casa (uma autêntica boca de cena!), a irmã arranca o vestido e mergulha na chamada fonte do tritão, localizada no quintal da fazenda, diante do namorado. Briony tira duas conclusões, uma de ordem literária e outra moral, sobre o pretendente da irmã, a quem atribui “impaciência” e uma certa manipulação sobre Cecília. Claramente duas camadas interpretativas apresentam-se ao leitor: uma originária, concernente à própria história que nos é contada, outra de ordem metatextual:

Reparação, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 369 páginas)

“Parada no quarto, aguardando a volta dos primos, Briony deu-se conta de que poderia escrever uma cena como aquela ocorrida junto á fonte e que poderia incluir um observador oculto, como ela própria. Imaginava-se agora correndo para seu quarto, pegando um bloco de papel pautado e sua caneta-tinteiro de baquelita marmorizada. Já via as frases simples, os símbolos telepáticos se acumulando, fluindo da ponta da pena. Poderia escrever a cena três vezes, de três pontos de vista; sua excitação era proporcionada pela possibilidade de liberdade, de livrar-se daquela luta desgraciosa entre bons e maus, heróis e vilões. Nenhum desses três era mau, nenhum era particularmente bom. Ela não precisava julgar. Não precisava haver uma moral. Bastava que mostrasse mentes separadas, tão vivas quanto as dela, debatendo-se com a ideia de que outras mentes eram igualmente vivas. Não eram só o mal e as tramoias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisa ter.”

Esse trecho é uma interrupção narrativa, uma espécie de preleção subliminar de Ian McEwan travestido em seu alter ego, Biony Tallis. Seu objetivo é expor aquela segunda questão, referente ao poder da literatura. Estamos diante do insight que muda tudo e prefigura as mentes de Briony, Cecília e Robbie, cada uma com sua ideia de verdade. Em seu contexto, é a descoberta de um novo método narrativo. “Reparação” é um livro sobre o poder da observação e sua conversão em texto, em que McEwan nos coloca dentro da mente de um escritor e diz assim: “Agora vou lhes mostrar a matéria-prima e como convertê-la em ficção”. Trata-se, assim, de um livro sobre o amadurecimento; em particular o amadurecimento do escritor; um livro sobre a complexidade da vida e a consequente perda da inocência, inclusive da inocência relativa à concepção ficcional. Enquanto método, a metatextualidade é uma das mais importantes características formais de McEwan, basta ver como “Serena” (2012) também se constrói.

Temos na sequência os capítulos 5 e 6 de “Reparação”. Teoricamente poderiam ser suprimidos sem prejuízo, uma vez que giram em torno de coadjuvantes — Paul Marshall (amigo que acompanha Leon), as três crianças e a matriarca Emily Tallis — e achamos que nada acrescentam, de fundamental, à história. Desconta-se o fato de que são capítulos orgânicos, na medida em que pontuam onde está cada personagem e em que posição da casa, em uma história na qual os planos são importantes e acontecimentos capitais pressupõem simultâneos pontos de vista. Avançamos para o capítulo 7 e temos a ambivalente Briony de volta, destruindo urtigas no quintal. Ela está chateada com Lola e com “Arabella em Apuros”, tão imatura, tão inocente, diante da cena mais complexa que acabara de testemunhar. Já o capítulo 8 revela-nos quem é Robbie Turner (contra quem a garota se volta, no afã de proteger a irmã).

Robbie, que é o jardineiro e agregado da família, arruma-se para ir ao jantar de recepção a Leon; conhecemos sua origem familiar, seu caráter, seus sonhos e ansiedades. Ao sair de casa encontra-se com Briony, a quem incube de entregar uma carta para Cecília, por quem está apaixonado.

Parece haver no episódio acima uma falha de verossimilhança. Robbie ter-se utilizado de Briony para entregar sua carta de amor a Cecília não seria dispensável, uma vez que ele está a caminho da casa dos Tallis? Em questão de minutos ele próprio a entregaria à namorada, sem intermediação. Sem contar que, a despeito do conteúdo, a revelação constitui um fato íntimo, de interesse exclusivo do casal.

Seja como for, tal entrega ocorre no finalzinho do capítulo 9, depois de testemunharmos as arrumações de Cecília e seu reencontro com o irmão. Nesse ponto, segundo McEwan, Briony está atravessando para a arena dos adultos, pois já aprendeu a “dissimular”. Curiosa e talvez precavida, a garotinha violou a correspondência endereçada à irmã e descobriu o conteúdo obsceno. Seu conceito acerca de Robbie piora ainda mais. Então, o capítulo 10 é uma reflexão sobre a interpretação que Briony e Lola passam a ter de Robbie, um “psicopata”. E é também o capítulo da terceira cena real, quando ela flagra a irmã em “luta corporal” com Robbie, na biblioteca de casa. Isso é descrito no décimo 11º capítulo. Foi tudo consentido, porém Briony, induzida pelos episódios da fonte do tritão e da carta, acha que a irmã está sendo violentada. Atônita, Cee não a desmente. De volta à mesa, as tensões entre o casal e a menina afloram nos diálogos, até todos se darem conta de que Jackson e Pierrot sumiram na noite.

Em se tratando de verossimilhança, talvez seja menos lógico ainda a conclusão de Briony sobre a cena da biblioteca e sobre o caráter de Robbie, uma vez que o comportamento do casal à mesa, logo em seguida (o próprio fato de Cecília sentar-se à mesa com o possível agressor), não corrobora a ideia de violência. Briony é perspicaz demais para não refletir a respeito disso (não há menção a qualquer sinal de terror), e, se não o faz em nenhum momento, McEwan nos induz a concluir que é porque a imaginação da garota necessita que Robbie seja um criminoso. Tratar-se-ia, nesse caso, de um autoengano para fins criativos?

À semelhança dos capítulos 5 e 6, o 12 é quase um interregno; uma imersão, sem muita importância, no fluxo de consciência de Emily Tallis, enquanto os demais saem à procura dos gêmeos.

No capítulo 13 as coisas são recolocadas nos trilhos. O foco volta a ser Briony, dando voltas no quintal e também imersa em pensamentos. Ao se aproximar de uma ponte, testemunha um vulto atacando a prima Lola. Imediatamente conclui que é Robbie Turner, mas a própria Lola não tem certeza disso (o leitor pode imaginar que seja o jovem Danny Hardman, que trabalha na fazenda e flertara com a garota). Sem sucesso na busca pelos meninos, quase todos retornam para casa e chamam a polícia. Finalmente, no capítulo 14, a residência dos Tallis está cheia de policias e Robbie Turner é preso quando também retorna, já de manhã trazendo os gêmeos, sãos e salvos. Briony revelara sua carta obscena aos policiais, todos a leram. Cecília faz um escândalo, mas suas motivações não são claras para a irmãzinha, que se recolhe e já questiona as próprias conclusões. É tarde, porque a desconfiança já está instalada: Robbie, que poderia ser o grande herói da noite, tem um comportamento suspeito, estava com duas crianças desaparecidas e a terceira, Lola, fora atacada por um “desconhecido”.

A primeira parte de “Reparação” visa confrontar fantasia e realidade; trata da passagem da adolescência à fase adulta de Briony e das implicações disso para seu amadurecimento literário. O contraponto é dado por Robbie, personagem que lhe revela o outro lado da vida, o lado cru e perverso. Embora estejamos certos de que Briony Tallis é a protagonista de “Reparação”, ela não atua diretamente na segunda parte do romance, dedicada pelo autor a Robbie Turner, esboçado no capítulo 8. Já essa parte parece ter duas funções: primeiro, expor Turner a um campo de provas de sobrevivência física; segundo, realçar seu caráter. A impressão final é de que, entre outras qualidades (já sabíamos que era otimista e autoconfiante), se trata também de um rapaz determinado, sensato, corajoso, íntegro etc.

Começa com ele, um soldado de infantaria, batendo em retirada a caminho do porto de Dunquerque, na França. Fora convocado para servir ao exército britânico na Segunda Guerra, por sorte não se expusera a confrontos diretos e — graças a uma espécie de liderança natural — é o guia a dois cabos, Mace e Nettle. Depois de alcançarem uma fazenda, contraem a simpatia dos moradores e passam a noite em um celeiro. Turner não consegue dormir, os pensamentos não permitem que descanse. Está impressionado com uma cena horrorosa vista naquela tarde, depois evoca os três anos e meio de prisão (!), mas principalmente pensa em voltar para “ela”, de quem recebe cartas semanais desde quando se separaram. Robbie e Cecília continuam apaixonados e decididos a reconstruir juntos suas vidas. Ela rompera com a família, e em tanto tempo tornara a se encontrar com ele uma única vez, no presídio. Na última carta recebida por Turner, somos informados que Briony decidiu seguir a irmã e tornar-se enfermeira. Sua carreira literária parece não ir bem (tem uma peça recusada) e quer um encontro; parece estar arrependida e disposta a rever seu depoimento à polícia.

Após a noite no celeiro, Turner e os colegas retomam sua marcha rumo ao Canal da Mancha. No caminho encontram uma coluna quilométrica de refugiados militares e civis; ele é salvo de uma convocação emergencial graças a um bombardeio da força aérea alemã, Luftwaffe. Sobrevive, e, entre descrições e narrativas, McEwan nos introduz em seus pensamentos. Eles retornam à última carta de Cecília — sugerindo uma luz no fim do túnel! —, e inevitavelmente incluem Briony em seu perímetro. Turner se lembra, então de um episódio entre ambos — ele tinha 19 anos, a garota 10 — quando a ensinava a nadar. A menina se jogara no rio para ver se ele a salvaria, e quando depois ele pergunta por que fez aquilo. A resposta, surpreendente, é que ela o ama! Assim, ficamos sabendo que Robbie foi o primeiro amor (infantil, embora; certamente idealizado), de Briony. Disso resulta, na opinião dele, que Briony agira por ressentimento, uma vez que ele trocara seu amor pelo da irmã:

“Na sua imaginação, ele traíra o amor dela ao preferir sua irmã. Então, na biblioteca, a confirmação de seus piores temores, quando toda a fantasia caiu por terra. Primeiro, decepção e desespero; depois, um ressentimento cada vez maior.”

Saímos da consciência de Turner e somos lançados de volta à narrativa; episódios sobre a mixórdia destrutiva da guerra se sucedem. Na pior delas, um novo e mais agressivo bombardeio de Stuka mata uma mulher e uma criança que tentara proteger. Mais uma vez sobrevive, e quando finalmente alcança a ponte sobre o canal de Bergues-Furnes (desviaram a rota), nova ameaça de ser outra vez recrutado, dessa vez por um sargento mal-humorado. Safa-se ao fingir de manco, caminham muito ainda e chegam à praia de Dunquerque: um formigueiro humano à espera de salvação. No entretempo, Turner, Mace e Nettle salvam do linchamento, pelos próprios aliados, um aviador da Royal Air Force. Este episódio é uma advertência sobre os perigos da massificação, e, apesar da demonstração de solidariedade, em situações tão caóticas parecia não haver outro jeito: “Sobreviver requer egoísmo”. E Turner sobreviveu, sobretudo, porque tinha uma esperança, um motivo: “Vou esperar por você. Volte”, ela o havia exortado quando se despediram. Esse foi o mantra de todas as cartas de Cecília. Os navios de resgate finalmente o levam de volta à Inglaterra, ao amanhecer.

A terceira e última parte de “Reparação” é uma narrativa em terceira pessoa da própria Briony Tallis. Começa dentro de um hospital em Londres, onde é estagiária de enfermagem. McEwan descreve a rotina das profissionais, a luta incansável contra as bactérias, as regras e restrições a que se submetem. Também nos apresenta sua chefe disciplinadora, Marjorie Drummond. Quando se recolhe, à noite, Briony escreve cartas distanciadas para os familiares e volta a ser possuída por “seu verdadeiro eu”, de escritora. Lê Virginia Wolf, e uma nova teoria da literatura nos é apresentada: “A era das respostas definidas havia terminado. Como também a era dos personagens e enredos”.  Enviara um “conto” para a revista “Horizon” e não obteve resposta. Agora podemos supor porque fora recusada: Briony é uma autora de vanguarda, modernista. Avançada demais, ainda, no início dos anos 40.

Surpreendentemente, ela dividiu essa promissora carreira intelectual com uma profissão que exigia o máximo de sua dedicação, disciplina e desprendimento. É certamente uma autopunição, e mesmo assim fica o sentimento de que “jamais poderia desfazer o mal que causara”. Por intermédio de uma carta do pai fica sabendo que Lola e Paul Mashall se casariam. No capítulo 1, primeira parte, Lola usurpou-lhe o papel de Arabella, na peça que escrevera, e desde então estabeleceu-se uma rivalidade insanável entre as duas. Mas agora se sentia culpada em relação a Lola, e também tinha medo de que alguma coisa acontecesse com Robbie e a guerra agravasse ainda mais o seu crime.

Quando os feridos de guerra começam a chegar ao hospital onde trabalha, saímos da rotina e algo mais complexo acontece. A prosa de McEwan atinge verdadeiras epifanias, aqui. Em termos profissionais e afetivos, Briony amadurece em poucas horas diante do estado lastimável dos expedicionários britânicos. Dois casos são particularmente impressionantes: o de um soldado que perdera metade do rosto — “Mais acima, onde ela mal ousava olhar, viam-se descobertos os músculos em torno da órbita do olho. Uma coisa tão íntima, que não era para ser vista” —, e o de um cabo queimado em óleo: “O óleo viscoso que se se grudara a ele foi consumindo o tecido. O que estava estendido no leito eram os restos de um tição humano”. Os horrores descritos em “Meridiano de Sangue” (de Cormac McCarthy) encontram nesses trechos um páreo literário. Apenas nos transferimos do deserto para o interior agitado de uma enfermaria: a ação traumática ficou para trás, deixando apenas o frio resultado clínico. Resumida, a violência é não obstante mais minuciosa, e o realismo da descrição realça ainda mais o efeito deprimente.

Se essas passagens nos oferecem o horror em estado puro, na seguinte a ternura se sobrepõe ao horror. Briony cuida de um infante francês de apenas 18 anos que perdera uma parte do crânio: “Abaixo da linha irregular do osso via-se a massa esponjosa e sanguinolenta do cérebro, numa extensão de vários centímetros, desde o topo da cabeça até quase a ponta da orelha”. Seu nome é Luc, que por essa razão tem delírios e não fala coisa com coisa. Briony se afeiçoa a tal ponto por ele que chega a imaginar um futuro ao seu lado; futuro que depois imagina ser “inacessível” porque Luc morrera de um espasmo, assim que o atendeu. Quando vai dormir ela descobre a carta da editora de “Horizon” sob a porta. O conto “Dois vultos junto a uma ponte” causa “entusiasmo sincero”; Briony é um “talento evidente”, porém fora recusada. O motivo resume talvez o credo estético de McEwan, sessenta anos depois da revolução modernista: “faltou desenvolvimento”, “tensão narrativa”. Seu alter ego, C.C. (que assina a carta), lembra que os leitores mais sofisticados de Briony “talvez estejam informados sobre as teorias da consciência de Bergson, mas estou certo de que eles ainda guardam em si o desejo infantil de ouvir uma história, de ficar em suspenso, de saber o que acontece”.

Segue um dia de folga em que Briony atravessa Londres a pé. A atmosfera é de guerra; em três meses a cidade será bombardeada pelos alemães. Ela tem dois compromissos: o primeiro em Clapham Common, onde acontece o casamento de Lola e Marshall. Uma cena ao ar livre, um pouco antes, faz com que se lembre da carta de “rejeição edulcorada”, da “Horizon”, e vida e ficção voltam-se a se fundir, saborosamente. Estariam certos em seu julgamento sobre seus defeitos de ficcionista? A ausência de uma “espinha dorsal”, de uma história, não seria um reflexo de sua covardia? Então, para ela, o fluxo de consciência ganha um significado: “As evasões daquela novela eram precisamente as de sua vida. Tudo o que ela não queria enfrentar também fora eliminado da novela — e a novela se ressentia dessa falta”. Ao alcançar a igreja, uma revelação escandalosa é feita ao leitor: o estuprador de Lola fora Paul Marshall, e não o jovem Hardmann. O anódino rapaz é peça chave na trama de McEwan; ele não aparece por acaso, e o leitor talvez se veja obrigado a reconsiderar o capítulo 5, onde Marshall conversa a sós com os três irmãos, em um quarto. Toda a ironia desconcertante da cena do casamento se exprime nas conhecidas palavras do celebrante, sobre a possibilidade de alguma interdição conhecida: “que fale agora ou cale-se para sempre”.

Briony se cala, mais uma vez, diante da exortação moral do pastor, e parte para o segundo compromisso. Dirige-se a Balham, onde mora Cecília. Havia cinco anos que não se viam. A irmã, naturalmente, a recebe com frieza numa casa de aluguel. Primeiro conversam na escada, e depois entram. Robbie está lá dentro. O diálogo é longo, delicado, áspero; a vontade dele é partir-lhe o pescoço ou jogá-la escada abaixo. Briony reconhece a paixonite infantil que “imediatamente” teria esquecido ao declarar seu amor, na infância. Bem, com base nas suspeitas de Turner não precisamos acreditar nisso: “Durante três anos ela provavelmente conservara o afeto por ele, oculto, alimentado por fantasias e ampliado nas suas histórias”. Se é verdade que a grave acusação que fizera contra ele decorre de ressentimento, isso acontece seis anos depois da “paixonite” que desaparecera num átimo. E um pensamento que tem diante dele só reforça a ideia de uma paixão recolhida: “Estranho que, apesar de sua culpa, ela sentisse necessidade de resistir a ele. Se não resistisse, seria aniquilada”.

O nome de Hardmann surge na conversa e Briony revela que Marshall é o estuprador. Exaustos, por fim, Robbie expõe-lhe os pontos: ela contará aos pais e fará uma declaração formal. Nada poderá ser omitido. Um pouco mais tarde Briony pede-lhes perdão, no metrô de Balham, despedindo-se na sequência. Sente-se agora aliviada; tranquiliza-se com a ideia de que o amor do casal resistiu a si e à guerra. Briony está pronta para fazer sua reparação. Para o casal, e particularmente para Robbie, ela talvez significasse uma pessoa má. Porém, com seu imenso poder de observação, Briony sabia que, por pior que tenham sido as consequências de seus atos, houve apenas uma série de mal-entendidos e uma imensa confusão.

No epílogo de “Reparação” o modo narrativo sai da terceira pessoa para a primeira, e o tempo verbal transita do passado para o presente. A romancista Briony Tallis é quem está nos contando a história, agora: a obra que estamos lendo é de sua autoria, cujo original é de 1940. Nesse sentido, a autorreflexão é um adendo ao romance, que na mente da autora se conclui com a despedida na estação de Balham. Briony está completando 77 anos e, no dia anterior, recebera o diagnóstico de demência vascular. Com o médico à vista, compõe-se um dos trechos mais memoráveis do livro, sobre o desligamento progressivo da vida, em direção ao esquecimento:

“Em suma, enquanto me ajudava a vestir meu casaco, ele me deu o seguinte roteiro de viagem: perda da memória, de curto e longo prazo, o desaparecimento de palavras isoladas — talvez os substantivos simples fossem os primeiros a ir embora —, depois a própria faculdade de linguagem, juntamente com o equilíbrio e, pouco depois, todo o controle motor, e por fim o sistema nervoso central. Boa viagem!”

A versão final de “Reparação” é de 1999; a morte se aproxima e tal diagnóstico terá um peso determinante sobre a conclusão da história. Com “toda uma maré de esquecimento” pela frente, Briony já não tem “a coragem de seu pessimismo”. Ela acaba de atravessar Londres para visitar o Imperial War Museum, onde buscara as fontes sobre a guerra. Quase topa com lord e lady Marshall saindo do prédio, e evita-os escondendo-se atrás dos canhões de acesso. Lola, comparada a Cruela Cruel, tem “um toque teatral de vilã”. Briony está diante de um problema jurídico: o livro está pronto para ser publicado e não pode ir em frente porque os incrimina. Poderá ser processada por isso, já que os Marshall estão vivos e parece que saudáveis, apesar de decrépitos. Já ela, em dois anos, terá perdido a memória. À tarde viaja para a antiga propriedade da família, transformada em hotel. Há muita nostalgia; um grupo de 50 pessoas, organizadas pelo neto de Pierrot, a aguarda para comemorar seu aniversário. Da própria família, apenas o irmão Leon está presente. A surpresa da noite fica por conta da encenação, por netos e bisnetos, de “Arabella em Apuros”: uma estreia com 64 anos de atraso. Depois disso, recolhida ao quarto, Briony Tallis reflete outra vez sobre “Reparação” e os empecilhos da lei, para publicá-lo. O leitor saboreia uma nova aula metaliterária, que nos dá esse excerto gratificante.

“Pensar, tudo bem; escrever, não. Todas as sugestões óbvias me foram dadas — deslocar, transformar, disfarçar. Utilizar a névoa da imaginação. Para que servem os romancistas, afinal? Vá até onde for estritamente necessário, monte acampamento alguns centímetros além do alcance dos dedos da lei.”

A ficção não é factual, às vezes porque não convém. Outras vezes porque desbancaria no “realismo mais árido”, que McEwan ou Briony Tallis querem a todo custo evitar.

Daí a conclusão. Ela é trágica: Turner na verdade morrera de septicemia e Cecília na Blitz de Londres, em 1940. Não consumaram seu amor, ceifados pela guerra. Mas a ficção mudou isso. Na ficção o amor venceu e ficam juntos; na ficção que tem o mágico poder da transubstanciação.