Cristofóbicos unidos

Cristofóbicos unidos

Subia a Voluntários da Pátria a contragosto, a meio quilômetro por hora, num esforço sobre-humano, quase canino, para não sofrer um colapso. Uma bunda patriótica que me servia como guia, instigava-me a correr ladeira acima e já tinha dobrado a esquina fazia um século. Era uma bunda alegre, firme e altruísta. Fantasias sexuais inconvenientes invadiram o meu cérebro obtuso, sufocado pelas partículas de dióxido de carbono. Era muito mais difícil correr de pau duro, mesmo assim, não podia me dar ao luxo de desprezar uma ereção, ainda que fosse naquelas condições periclitantes. Um sujeito passou por mim empurrando uma bicicleta e protestou “Malditos comunistas! Cristofóbicos! Jesus está voltando!”. Não entendi bulhufas, o que não fazia muita diferença. Tinha tanta coisa estranha acontecendo no país, ultimamente. Eu já vivia desentendido a maior parte do tempo.     

As crianças desmontam a gente, sabem como é. Às vezes, desmoralizam-nos com a sua visão simplista do mundo. Cruzei por um pequeno grupo de pessoas, já bastante combalido, com o estado físico deplorável. Era uma família com pai, mãe, um casal de filhos e o cachorro. Uma garotinha, que devia contar 5 anos, se muito, deteve-se por um instante, ao testemunhar, atônita, o meu sofrimento para vencer o aclive. Então, marchou sobre a calçada, do meu lado, fingindo ser um soldado e gritou palavras de ordem, engrossando a voz o máximo que podia: “Um, dois, feijão com arroz. Três, quatro, feijão no prato…” e assim por diante.

Todos riram, exceto, eu. Por causa da óbvia falta de oxigenação cerebral, não conseguia sorrir, falar, muito menos, acenar em agradecimento pelo incentivo providencial que me garantiu fôlego suficiente para que terminar a rampa e alcançar a barraca de água-de-coco, o meu destino final antes de enfartar. Esbaforido, liquidado, praticamente desfalecido, sentei na guia. Baratas graúdas, afoitas, ufanistas, surgiram para me bater continência. Batam-me uma punheta, suas malditas! Fazia um calor dos diabos. E quando a temperatura ambiente extrapolava os limites, eu perdia a elegância, escrevia grosserias, saía da curva da normalidade, ao par que as baratonas ficavam agitadas, deixando os esgotos e os bueiros para socializar.

A imagem da garotinha grudou na minha mente. Sua voz também. Pensar em Haydée foi inevitável. Ela faria 13. O rapazola do coco escolheu um com bastante água. Eu estava desidratado, pensativo, aturdido. Fazia meses que não sonhava com Haydée. Senti um misto de culpa com saudade rascante. Uma bosta. Tinha pisado em coco de gente pensando que fosse de cachorro. Todos os homens que moravam na rua eram livres. Em parte. Sequei o coco numa única sugada. Senti o esôfago reclamar, contorcer, sofrer de frio. Azar das vísceras. Falei pra ele ficar com o troco. Prestimoso, o vendedor aspergiu álcool 70 nas minhas mãos. As autoridades sanitárias recomendavam que os cidadãos fizessem a devida assepsia, depois de pegar em dinheiro. Quem tava pegando em dinheiro, ora e essa?! Só queria uma dessas novas notas de 200 nas mãos, raras como um lobo-guará. Eram limpas, cheirosas e destituídas de micróbios, de dormir abraçadinho, de esfregar na genitália.

Rompantes de descompostura. Vocês têm razão. Fiquei mais acabrunhado ao descobrir que já não me lembrava ao certo de como era a voz de Haydée. Passara-se uma década. Hoje, se tivesse 13 anos, se estivesse andando por aí, já teria menstruado, já teria feito a catequese, a pedido da mãe e da avó; já teria criado um perfil nas famigeradas redes sociais da internet e até dado o primeiro beijo na boca de um menino. Ou de uma menina, vai saber.

Tinham arrancado a pedra da bexiga do presidente no Einstein. Energia era igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado. Concluí que não estava nem aí para Sua Excelência, que eu estava praticamente sem energia nenhuma naquele momento. Eu disse que sim, que ele podia rachar o coco ao meio com o facão. Gostava de comer a castanha amolecida que tinha do lado de dentro. Viver era dureza. E eu, mole por dentro, duro por fora, que nem aquele coco da Bahia, que nem da Bahia era, mas, proveniente de uma lavoura em Goiás, só que sem o sabor do mar. Não tinha nada a ver com a infecção pelo Covid-19, com a perda temporária do olfato ou do paladar. Bem antes da pandemia, bem antes da ascensão meteórica e impensável da escumalha ao governo central, eu já considerava a vida menos palatável a cada dia. Então, para não piorar as coisas, já que não ia me converter e orar, comecei a correr pelas ruas da cidade. Quem sabe, virando um atleta amador, melhorava o amor-próprio, amenizava a saudade de Haydée ou acabava derretendo, providencialmente, sobre o asfalto quente, feito um homem de cera.

As crianças mexem com o emocional da gente, sabem como é. Os cães, idem. Um vira-latas sorridente se achegou a mim. Agitava o rabo de forma cálida, irresponsável. Afinal, éramos completos estranhos. O dogue sentou do meu lado. Estava claramente interessado na castanha de coco verde. Dividimos a iguaria ali mesmo, na sarjeta, irmãos que éramos, cada qual com a sua fome de viver. As vísceras ainda doíam. Mas, isso já era problema delas.