Eu parei para contemplar. Não para olhar. Contemplar

Eu parei para contemplar. Não para olhar. Contemplar

Julguem-me pelo clichê! Fazia uns dois anos que alguma coisa não acontecia no meu coração justamente aqui. Sete anos com título de eleitor neste lugar de ouro, e ainda acontece essa coisa? É amor que se chama, né? Quando não acaba, é amor? Quando se transforma? Quando agrega e subtrai, compõe e desfaz o outrora feito, significa e ressignifica reluzente em harmonia com a dor e o sorriso?

É amor que se chama quando você se sente protegido lá, chorando ou sorrindo, amando ou odiando, criando ou destruindo, fazendo as coisas que todo mundo faz e hipocritamente julga nos outros, fingindo que não faz? É amor que se chama? É amor ver na fresta de edifícios velhos uma mira para a Pinacoteca na qual repousam esculturas e quadros com os quais você já comungou tantas horas de contemplação ou por onde guiou tantos e tantas alunos e alunas: visitas com doces sucessos e adoráveis fracassos? É amor? É pertencer? É misturar carne, sangue e pedra? É saber que tudo é invenção? Que foram o acaso e a possibilidade que construíram?

E por isso mesmo, por ser fruto de uma vontade do homem, e não um presente mimoso de Deus, como mares, florestas, lagoas e montanhas, que você vê nesse todo multicolorido, que descuidados olhos chamam de cinza, um tipo desafiador de maravilhosa maravilha tinhosa, que se dá só aos que fazem por merecer — merecer é contemplar, carregar a pasta dos deveres, cumprindo os horários, atentando-se à humildade, à paixão e à morte que fazem essa poesia monolítica, pétrea, mas perfumada, mas somos desatentos. A desatenção não percebe perfumes, apenas cheiros: é amor entender isso?

É amor? É amor temer e amar o temor? Amar o terror, sentir-se não compadecido, mas cúmplice da injustiça das ruas? Uma mendiga catava papéis em sua calçada como quem limpa o chão de sua casa. Era! É! A calçada de uma cidade é chão de todos nós.

Eu parei para contemplar. Não para olhar. Contemplar.

Exalei algum tipo de fraternidade, e esta destituiu possíveis temores que um frívolo paletó poderia causar nela, por simular entre nós uma distância que em essência — graças a Deus — não existe. Ficou em paz comigo lá, diante dela, homem de grandes proporções que sou.

A máscara me permitiu sorrir de encanto, sem medo de errônea interpretação sua. Ela poderia ver o jocoso cínico, impróprio, estúpido e altivo em meu sorriso, e não o encanto genuíno que o fazia brotar diante da contemplação.

Mas ah! Quem limpa o chão de uma calçada com mãos delicadas, tirando a sujeira como quem colhe um fruto desperdiçado, sabe muito mais de semblantes do que eu, que li algum Lacan, fiz alguma análise, vi e revi Riobaldo reagir, descrever um interlocutor que só fala pelo tal semblante! Ela sabe tudo, e não se deixou enganar. Deu-se por sabida, pois meus olhos riam mais, eram mais cúmplices do que qualquer sorriso.

Então vem a sua voz, como a da “Máquina do Mundo”, com múltiplas implicações. Econômica, uniu o improvável: cabralina, foi assertiva, e diminutiva, afetiva como Vinicius de Moraes: os poetas, amigos e antípodas, vieram juntos, num vagar de quem continua prosa já estabelecida em nossos silêncios. A sua voz não abriu uma instância enunciativa, apenas deu outro tom a tantas coisas já enunciadas: “…limpando… catando pra ficar bonitinho, né?”

Uma onda gigantesca, oceânica, de ressaca brava, invadiu-me o peito. Eu quis beijá-la. Foi a criatura mais doce do meu dia. Talvez do meu ano. Uma das mais doces de minha vida? Suas mãos cuidavam da calçada com uma apropriação responsável, solitária, concentrada, orgulhosa: materna.

Preciso explicar, depois disso, o que são flores brotando do asfalto, em São Paulo? Recuso-me a tal perfume na flor.