Aos pais que se foram

Aos pais que se foram

Em um primeiro pensamento o pedido é para que o segundo domingo de agosto passe rápido. Que o dia seja generoso permitindo-se ser breve. Que os ponteiros sejam aliados dobrando as voltas a cada rodada no relógio velho de madeira que ainda lembra ele. Que a manhã do dia seguinte seja ousada e surja antes do previsto, anunciando um novo sol. Num primeiro pensamento o desejo é de que a convenção subverta sua lógica e neste dia do ano pule direto das noites de sábado para os jornais matutinos de segunda. Ao menos para os que pedem que o segundo domingo de agosto seja curto e abrevie a enormidade de saudade que arrebata o coração.

Mas o relógio de madeira diz que não. E segue seu ritmo, sua função, seu destino previsto pela soberania de um tempo incontrolável. E então a dança imutável dos ponteiros me faz lembrar da sentença resoluta de meu pai quando se referia ao tempo que lhe cabia e ao tempo que era meu por direto. “A lei da vida é que o meu se esgote antes que eu possa ver o seu se esgotar.” Eu pedia para mudarmos de assunto e, de comum acordo, trocávamos a pauta para as fotos de viagens, o cardápio do almoço, as histórias divertidas.

E foram muitas. Hoje mais claras, realçadas pelo colorido que a perda confere às trivialidades antes desvalorizadas pela estúpida certeza de que seriam eternas. De repente me vejo pensando o mesmo que ele pensava ao pronunciar convicto que poderia ter feito mais, na expressão genuína dos pais que acreditam ser de merecimento dos filhos todo o seu mundo. Sacramentada sua partida irreversível para longe de mim, penso que poderia ter feito mais enquanto o perto ainda era a única realidade possível. Mais afagos, mais passeios, mais conversas. Mas isso é só a falta mostrando que se ela existe é porque muito foi feito e muito foi vivido.

Não tem jeito. Sempre haverá sensação de escassez quando há amor. Porque amor é sinônimo de abundância na presença, mas de incompletude na saudade. E é esse amor que faz as milhares de risadas parecem poucas, as centenas de jantares parecem insuficientes, as dezenas de domingos em agosto parecem apenas um pequeno trailer de um filme que merecia as horas de todos os longas já produzidos desde a invenção do cinema. Ainda que todos os momentos fossem dobrados e posteriormente triplicados pareceriam ínfimos. Ainda que os abraços se multiplicassem elevados à potência da vontade de mantê-los vivos, pareciam mínimos. Ainda que fosse possível viver 200 anos e só aí você partisse, pareceria cedo.

Mas esse foi seu tempo. E a parte da sua jornada que também foi minha foi muito boa sim, sejamos justos. É que dá vontade de comprar mais meias para o segundo domingo de agosto. Dá vontade de pedir mais pizza, de mandar mais mensagens pelo Whatsapp, de comprar mais voos nesta data para desejar pessoalmente um feliz dia a você. É que dá vontade de contar as novidades que brotaram desde o último adeus. E de comentar as notícias, de perguntar sobre a história dos seus pais, de criar mais arquivos para a caixa das boas lembranças. Dá vontade de postergar infinitamente o dia em que a realidade se transforma em memória. Ironicamente hoje é justamente na memória que reside o alento. Pensando bem, que o segundo domingo de agosto seja longo e passe lentamente, para que eu possa recordar todos os outros com calma e orgulho.