O menino que havia em mim pulou de um prédio e voou

O menino que havia em mim pulou de um prédio e voou

Não me recordo que idade eu tinha. O suficiente para voar, quem sabe. Tirei a camiseta. Peguei uma toalha de mesa. Amarrei-a no pescoço. Era a minha capa. Subi numa pilha de tijolos. Parecia a montanha perfeita para um salto no espaço. Testei os bíceps. Soltei o grito de guerra. Sem titubear, pulei de olhos abertos, com os braços esticados para frente. A vida nunca acolhe os desvarios. Espatifei no chão. Cortei fundo o joelho. Mamãe pôs as mãos-de-amassar-biscoito sobre o rosto e chorou. Papai ficou bravo, lavou a ferida com mertiolate ardido, ordenou que eu fosse homem, que eu parasse de chorar e enfiou tufos de algodão até estancar o sangue. Ainda guardo as cicatrizes.

Notícias ruins correm. E como correm. Trabalho com um médico ranzinza, um sujeito desagradável com baixíssima vocação humanista que adora compartilhar más-novas. É batata. Quando cruzo por ele nos corredores de éter do postinho-de-doenças, sinto o estômago se contorcer, procuro uma pilastra para me esconder, percebo uma onda de negatividade dissipando pelo ambiente e me sugando até o bagaço. Laranja chupada é como eu me sinto. O fanfarrão é especialista em cobreiros, catarros, melodramas e teorias da conspiração. Ultimamente, anda incutido com a convicção terrivelmente patriota de que forças ocultas querem destituir o atual presidente da república, derrubar o governo e implantar o comunismo no país. Só lhe falta uma capa para pular de uma gilete. Além de reacionário, é um borra-botas.

Durante os meus exercícios diários de sobrevivência no caos interior, especulo que as relações interpessoais e a comunicação instantânea, globalizada, estão adoecendo a humanidade em patamares impensáveis. Insanidade mental é uma pandemia obscura. Ansiedade. Depressão. Pânico. Suicídio. Parece que o estilo de vida contemporâneo nos atropela com informações e velocidade. Por consequência, uma régua imaginária nivela, por baixo, a inteligência e a capacidade de discernimento e de indignação de muitos, frente às famigeradas mazelas cotidianas. Aprisionados em redes sociais da web, consumimos informações várias, às vezes relevantes, quase sempre supérfluas, inverídicas, cruéis, carregadas de intolerância e de falta de empatia.   

Há um desconfortável fetichismo pelo mau gosto e pelo mórbido espetáculo de notícias escabrosas que nos chegam pelos telejornais, pelos canais da internet, pelos instrumentos viciantes de Mark Zuckerberg, que testam a nossa capacidade mental para amortecer as tragédias diárias que ribombam em todos os cantos do planeta. O filho da empregada que caiu do nono andar em Recife. O adolescente fuzilado, dentro de casa, por militares no Rio. A transmissão, on time, on demand, do sufocamento, até à morte, de um homem negro, por policiais de Minneapolis. O misterioso sumiço de Madeleine, aos 3 anos de vida, supostamente, raptada, violentada e morta por um maníaco sexual, em Algarve. São desgraças que despedaçam os corações. Ferimentos que nunca cicatrizam. E não tem mertiolate ardido que dê jeito.

Fotografia: Ulrike Mai