Há cidades que não foram feitas para serem entendidas. A lógica urbana, com seus horários, rotinas e esquinas previsíveis, falha já na chegada. Não há linha reta que leve ao centro. Às vezes, nem centro há. Há igrejas tortas, escadarias que sobem para lugar nenhum, estátuas de seres que ninguém sabe ao certo se existiram. E há, sobretudo, uma atmosfera: espessa, um pouco úmida, como se a própria cidade respirasse de volta no rosto do visitante.
Gente que vive ali não se apressa. Não por afetação — mas por outro tipo de calendário. Um que responde ao nascer da neblina, ao humor da pedra, ao retorno do pássaro. As conversas se alongam, não pela importância do assunto, mas pelo prazer de testá-lo por dentro. É possível, nesses lugares, comprar um pão artesanal feito por alguém que lê tarô, enquanto espera a filha voltar de um retiro de silêncio. Ou encontrar um engenheiro que virou escultor porque sonhou com isso três vezes seguidas.
Sim, há certo exagero. Mas é um exagero íntimo. Nada ali é feito para agradar forasteiro. E talvez por isso mesmo, tudo ganha autenticidade. Máscaras usadas em festas não encobrem nada: revelam. O que se oferece ao estranho não é espetáculo — é espelho. E quem tem pressa, sente desconforto. Não há QR Code para entender o clima. Nem folder explicativo sobre o que se passa nas entrelinhas da arquitetura ou nas frases pausadas dos anciãos.
Ali, a esquisitice não é efeito da paisagem: é parte do pacto. Um tipo de pertencimento invertido, onde só fica quem aceita não ser decifrado. O normal é visto com cautela — às vezes, com pena. Afinal, o que é normal numa cidade onde a terra cura, o céu responde e as pedras guardam mensagens?
Não há resposta simples. Mas há uma certeza que se aprende devagar: em certos lugares, ser estranho é a única maneira possível de estar em casa.

A 1.200 metros de altitude, no coração de um dos biomas mais antigos do planeta, vive uma população que parece sintonizada em outra estação mental. Por ali, terapeutas vibracionais, biólogos conscientes, veganos militantes, youtubers místicos, nômades digitais e senhores do cerrado convivem em harmonia desigual. A avenida principal abriga mais lojas de cristais e retiros de cura do que mercados. Alguns fazem mapas astrais em troca de pão, outros organizam círculos de silêncio em horários solares. O céu, azul violento de dia, estoura em estrelas de uma nitidez quase ofensiva à noite. Retiros xamânicos coexistem com pizzarias artesanais, e toda trilha leva a alguma catarata onde banhar-se é mais que lazer: é rito. A Chapada ao redor impõe silêncio, mas dentro da cidade, a conversa gira em torno de energia, frequência, ascensão. Os moradores mais antigos olham tudo com ceticismo paciente. Já os que chegam, trazem uma pressa em se curar. Há quem venha só por curiosidade e acabe ficando sem saber bem por quê. Nesse lugar, esquisitice não é estilo de vida: é consequência inevitável de estar em contato constante com o invisível.

À beira do sul baiano, onde o rio encontra o mar com um cansaço antigo, um vilarejo sem carros resiste ao tempo com uma elegância ferida. As ruas são de areia, os caminhos se cruzam entre jangadas, coqueiros e pessoas que desapareceram do mundo urbano por escolha — ou por falência dele. Nativos pataxós convivem com músicos que acordam ao entardecer, terapeutas intuitivos, andarilhos discretos e estrangeiros que ficaram tempo demais para ainda serem turistas. As festas começam em silêncio, com sorrisos velhos de conhecidos novos. As crianças andam soltas, descalças e sem pressa, como se soubessem que tudo aqui foi pensado para durar pouco — e por isso mesmo merece ser lento. A energia elétrica chegou, mas ainda se escuta melhor à luz de lamparina. As vozes são baixas, as amizades feitas de olhares. Há muito amor em suspenso, muita solidão bem acomodada. E uma regra não escrita: quem precisa explicar demais o que veio buscar, provavelmente não vai encontrar. O tempo ali não corre nem para. Ele gira. E cada volta ensina que a normalidade é um vício do continente.

Escondida entre montanhas altas e vegetação cerrada, essa vila parece ter se mantido à margem do tempo turístico que consagrou outras partes da Chapada. As ruas de terra vermelha ainda levantam poeira ao entardecer. As conversas, quase sempre sussurradas, ecoam entre casas de adobe e quintais com bananeiras e redes estendidas. Artistas constroem com as mãos o que não conseguem explicar com palavras: esculturas habitáveis, fogões de barro que parecem totens, objetos que servem mais para encantar do que para servir. Os encontros acontecem à beira do fogo, sem pauta. Há xamãs que não se dizem xamãs, curadores que não tocam, e anfitriões que recebem desconhecidos como velhos fantasmas da mesma trilha. A mata é vizinha e personagem. Não é raro ver alguém parado, de frente para um morro, em silêncio — não meditando, apenas ouvindo. O turismo chega devagar, sem alarde, e só fica quem percebe que ali, hospitalidade não é serviço: é estado de espírito. O tempo em Ibicoara não se mede em relógio, mas em folhas que secam, em pedras que aquecem, em presenças que não precisam ser anunciadas para serem sentidas.

Entre casarios coloniais, sons de sinos e brisas carregadas de perfume de alecrim, respira uma cidade onde a excentricidade tem raízes mais fundas que o barro das construções. A cada esquina, esculturas em pedra convivem com santinhos bordados à mão e orações deixadas em árvores como bilhetes para o invisível. Os moradores misturam fé barroca com práticas budistas, teatro com feira agroecológica, e se entendem sem se explicar. As festas religiosas não se encerram no altar: invadem ruas, incorporam batuques, se vestem de cores vibrantes e máscaras que assustam — e divertem. A arte é ofício comum: músicos, ceramistas, bailarinos e cozinheiros intuitivos se encontram nas praças e conversam como antigos conspiradores. O tempo se distribui em ondas: há quem trabalhe com afinco pela manhã e passe a tarde inteira apenas observando as nuvens. Os viajantes são recebidos com generosidade desconfiada. Os locais, com orgulho discreto, sustentam a tradição de viver fora de eixo — e dentro de si. Ali, normalidade soa como uma língua estrangeira. E a beleza não é fotografável: é sentida no intervalo entre duas frases sem pressa.

No alto da serra, entre pedras talhadas e ruínas de cal branca, sobrevive um vilarejo onde quase tudo parece vir de outro tempo — ou de outro plano. As ruas de quartzito refletem o sol como se fossem espelhos do passado, e os caminhos terminam em paisagens tão silenciosas que até o vento muda de tom. Os habitantes falam com voz mansa, gesticulam devagar e acreditam em coisas que, em qualquer outro lugar, seriam lidas como metáforas. Ali não são. É comum ouvir histórias sobre luzes que descem dos céus, grutas que atravessam continentes, e encontros com seres que não se apresentam com nome. A economia se move entre artesanato, mochileiros e um tipo de espiritualidade sem nome fixo. Muita gente chega para ficar dois dias e permanece por anos — como se tivesse sido convocada. Os bares tocam mantras, as vielas conduzem a mirantes onde o tempo parece se curvar, e a fé não se define: apenas se compartilha. Viver ali não é um estilo. É uma rendição voluntária ao mistério. E quem não suporta silêncio, costuma ir embora antes de entender.