A vida como ela era — ou por que, em meio à pandemia, prefiro um Nélson desgastado a uma Pollyanna reciclada

A vida como ela era — ou por que, em meio à pandemia, prefiro um Nélson desgastado a uma Pollyanna reciclada

Ruptura. Mudança de paradigmas. Ressignificação do mundo. Terceira Guerra Mundial. Solidariedade. Um evento como a pandemia de COVID-19, que tem a capacidade de chamar a atenção do mundo inteiro, sempre desperta em várias mentes aquele senso de “ah!, agora vai! O mundo vai mudar!”

Eu disse senso ou sensacionalismo? Não importa. Saltam aos olhos essas afirmações, especialmente a da mudança de paradigma. Não sei ao certo, mas acho que todo mundo, quando ouve “paradigma” pela primeira vez, tem antes uma impressão estética: que palavra sonora, bonita! Depois, aprende o significado e se decepciona: é só isso? Um encontro consonantal dessa magnitude (magnitude também é lindo) só pra representar o mesmo que modelo ou padrão?

Mas é a partir dos modelos e padrões que estão aí desde sempre que o sujeito, ao observá-los, vai se ressentindo do mundo. Sem estudo, sem emprego; sem emprego, sem renda; sem renda, sem projeção social. Veja bem, esse é um modelo, mas, para questioná-lo, chamar de paradigma é mais refinado e confere maior cientificidade ao discurso que questiona a sua validade.

Outro paradigma: substantivo — próprio ou comum — deve concordar com o respectivo artigo: assim, substantivo masculino concorda com artigo masculino; substantivo feminino concorda com artigo feminino. Não importa se é uma regra da língua, é só chamar de paradigma que, a partir de então, fica fácil questionar: afinal, paradigmas existem para serem rompidos. Não me perguntem, senhores, não vou citar nomes.

Liberdade de expressão. Nem é preciso desenvolver. É um paradigma. Vamos quebrá-lo?

É claro que, no turbilhão da pandemia e do confinamento, enxergamos as coisas de forma tortuosa e diferente, porque, afinal… as coisas estão tortuosas e diferentes. É assim que é: ninguém foi programado para estar desgraçadamente dentro de casa 30 dias por mês.

Mas, quando acabar (quando? quando?), vamos quebrar os paradigmas? Não vamos mais ter o sagrado futebol do fim de semana, o cineminha com pipoca, as crianças se acabando ao descer a ladeira de grama no elevado de um parque?

Quer dizer que é isso mesmo? Vamos aproveitar, oportunisticamente, de um colapso da saúde mundial para quebrar paradigmas? Implantar um novo “eixo epistemológico”? Derrubar governantes e materializar a história? A hora é essa? Sério isso?

Se me perguntarem — eu sei, ninguém perguntou — eu digo que, quando isso acabar, eu quero o mundo igualzinho era antes. Com desigualdade social; com machistas se esquivando dos deveres domésticos; com feministas repetindo o mantra “sem útero, sem opinião”; com disputas territoriais insensatas; com a minha esposa jogando na minha cara a cena de ciúmes que eu fiz em 7 de novembro de 1996; com meu filho caçula dando birras irracionais na hora de trocar a fralda; até mesmo com — vejam que crueldade — a beterraba!

Quer (não gosto dessa palavra, mas vá lá) ressignificar alguma coisa? É sinal então de que há algo dentro de você que tem significado mal. Mude você mesmo, e não o mundo: ele já tem bilhões de anos, é difícil de mudar.

A vida — e o mundo onde ela ocorre — é isso: um jogo de busca pela perfeição em que, sempre que se aproxima do obstáculo, ele é removido para (muito) longe. Ninguém vai sair mais pacifista ou filantropo dessa história — depois do surto de 1918 a humanidade saiu tão boa que, na década de 1930, vimos o holodomor e o início do holocausto. Ou, sem precisarmos ir muito longe, podemos ver, mesmo nesses dias em que tanto se clama por empatia, os torquemadas de plantão andando na rua, de celular em riste, para entregar quem está, veja bem,… andando na rua.

Quando isso acabar, talvez haja algumas celebrações contidas — para diminuir o risco de contágio — e vida que segue.