Sexo na quarentena

Sexo na quarentena

Querido diário, odeio-te mais do que músculo moído. Estamos no décimo oitavo dia de confinamento. Não bastasse o uso contumaz da banha de porco, Ceição deu para salgar a comida além da conta. E não é por falta de lhe pedir o contrário. Acabaram-se as pilhas do tensiômetro. Não se pode mais sair para comprá-las sem ser abordado pelos policiais e pagar uma multa indecente. Preciso de um salvo conduto para ir à farmácia. Não faço ideia a quantas anda a minha pressão arterial. A julgar pela dor de cabeça que não cessa nem com as pingas de Arizona, nem que eu reze pela TV com o Papa Francisco, deve estar nas grimpas. Se eu bater as botas de repente, fica aqui registrada a minha insatisfação pelo fato das indústrias Rayovac não disporem de um serviço remoto de venda e entrega de pilhas alcalinas aos clientes acometidos pela hipocondria.

Ceição está na pia cuidando da montanha de pratos. Posso enxergar os seus joelhos gordinhos sorrindo para mim. A dança das patelas. Agora não, Ceição, agora não. Nunca se comeu tanto nessa casa. Parece que a louça suja prolifera mais rápido do que o próprio vírus. Não sou muito afeito às lides domésticas, mas, tenho de resolver o vazamento do sifão, custe o que custar, doa em quer doer, nem que seja a última coisa que eu faça nesse mundo. Foi assim com a resistência do chuveiro, com a chave que quebrou dentro da fechadura e com a antena que insistia em sintonizar fantasmas. Quisera ter encarnado numa samambaia, mas, diabos, sou católico apostólico romano e não acredito nesse tipo de coisa. Já devo estar variando, por causa da clausura.

Ah… Que vontade de chutar uma bola. Não faço ideia de como os rapazes estejam se virando sem o divertido adjutório das Meninas da Dona Mirtes. Lá se vão duas semanas desde a última punheta com a mão invertida em tributo a Kanya Mi, uma streapper tailandesa que tinha um Dragão de Komodo tatuado no dorso que, na verdade, era uma refugiada venezuelana com uma anaconda desenhada nas costas. A situação anda crítica. Acredita-se que as medidas mitigatórias anunciadas pelo ministro da eucaristia, ou melhor, pelo ministro da economia não contemplarão templos e prostíbulos. Isso a imprensa golpista não mostra. Esperem até as crianças dormirem, joelhinhos de louça, esperem só uma coisa.

Mas, as crianças nunca dormem, têm uma energia irritante. “Eu chego a achar Herodes natural.” Nunca pensei que fosse ler poesia novamente, ainda mais, Vinicius de Moraes. Olho para baixo e enxergo toquinho, o meu velho e surrado camarada. Se o isolamento domiciliar obrigatório não terminar logo, é bem provável que, em breve, precisarei de uma lupa e de uma pinça de sobrancelhas para urinar. Certas coisas, quando não usadas, atrofiam. O cérebro, inclusive.

É fato que as crianças dão vida ao casebre. Mas, já esgotei o meu repertório de brincadeiras lúdicas. Ceição repete o tempo inteiro que com o Coronavírus não se brinca, e ralha com os pirralhos porque eles trocam catarro, brincam de brigar e, enfim, não param de se tocar e de agir como se fossem crianças. “Deixa de ser infantil”, ela diz porque belisco a sua panturrilha. Escondo o meu sorriso sonso. Ela manda que eu termine logo o reparo no sifão, porque ainda tem muita roupa para passar.

Voilà! Missão cumprida. O vazamento cessou. Nada que um Durepoxi não resolva. Beijo o rosto fofinho da Ceição. Doutor Dráuzio pediu para não beijarmos na boca. O pastor Peter-Peter, que já trocou de mulher ao menos umas duas vezes, diz o mesmo valendo-se de parábolas confusas do Velho Testamento. Na opinião dele, fazer sexo é, na maioria das vezes, uma coisa vista com maus olhos pelo Pai. Sexo com fins reprodutivos é foda. A bochecha suada de Ceição tem gosto de churrasco. Sinto uma fome que nem te conto, querido diário. Enquanto caminham para o quintal, seus joelhos alegres despedem-se de mim, sinalizando um adeus, quem sabe, um até logo mais à noite, depois que as crianças dormirem. Mas, elas nunca dormem.