Depois da tempestade vem a bonança

Depois da tempestade vem a bonança

Se pegarmos carona na geografia iremos relembrar dos países mais propensos a serem atingidos por furacões, dentre as habituais intempéries. Os Estados Unidos, Canadá, a Austrália e o Japão colocam-se no topo da fila. Agora imagine que, por hipótese, você e eu habitemos a América do Sul. Para nós soa estranho, longínquo, ficcional até aventarmos uma tragédia dessas. Furacões, tornados, ciclones. Todos sinônimos, nos dicionários dos sustos.

Suponha então você e eu presenciarmos um ataque de loucura da natureza que, coitada, também tem todo o direito de ensandecer. Ficar de saco cheio (ou de ovário, melhor dizendo, pelo fato dela ser moça) por nunca poder sair da linha.  Abandonar o posto de regente máxima da harmonia cartográfica na terra. Jamais poder reivindicar justas férias, ao criador do universo, quem quer que seja este imensurável arquiteto.

Mas está vetado à pobre e — costumeiramente — obediente natureza seu direito de pedir arrego desta interminável função. Ter que orquestrar diuturnamente as estações, os movimentos planetários, a conformação celeste de astros e planetas.

Você já parou para imaginar o gigantesco e solitário trabalho da mãe-natureza de cuidar dos ventos, marés, das variações atmosféricas, dos meandros da meteorologia, sujeita aos acasos que escapam a qualquer cálculo matemático ou astrofísico.

Eu nunca tinha pensado nisso. Mas estou refletindo neste momento. Não há ninguém no banco de reservas deste jogo sobre a terra que substitua esta emérita capitã do time da sobrevivência mundial. A juíza-máster de um campeonato de gigantes, em que derrotas não são permitidas, para que o planeta todo não desmorone drasticamente.

Tarefa mais que ingrata, esta a da natureza. Atuar como eterno árbitro de empates e ainda assim, satisfazer a plateia que sempre torce contra ou a favor de catástrofes. Gente do mal e gente do bem.

Falávamos de furacões, lá no início deste texto, ou da nossa conversa. Fato é que, imbuídos de toda nossa amena tropicalidade, não estamos nem aí para o que acontece de desagradável, nem mesmo os cataclismos anunciados pelas telas das tevês.

Digamos que você esteja se deleitando com a releitura de um dos livros da sua tenra adolescência, como eu — aficionada em “Germinal”, de Emile Zola, ou para citar outro, “Olhai os Lírios do Campo” — de Erico Verissimo, lambidos com sofreguidão às escondidas dos mais velhos da casa. Afinal, não é todos os dias que se desfila despreocupado pela vida com 12 anos.  Cheiro de mata fresca, plantinha sestrosa, recém molhada da chuva.

Imaginemos que a sua e a minha curiosidade (não importa o que você escolhesse ler ou se entreter aos 12 anos) tenham sido, desde a mais tenra idade, famintas. Curiosidade pesquisadora de sombras, esconderijos. Becos nublados, congestionados por fortes emoções e demandas.

Certezas avantajadas. Engasgadas por situações adultas, proibidas para adolescentes — portadores em suas mochilas de brim desbotado, de ideais ainda intocados pela realidade — e de fartos sonhos, acomodados no zíper dianteiro da mochila.

De repente, eu e você somos flagrados por estremecimentos inexplicáveis. Como se tudo ruísse à nossa volta. Do mesmo modo que o chão desaba sob nossos pés diante de mentiras toscas. O vento se anuncia sem bater à porta. Vem impaciente, rugindo como fera transparente, salivando como felino perigosíssimo.

O vento chega sem delongas, virgulas, metáforas ou eufemismos. Arranca nossos cabelos, nos retorce a boca, congela a língua, aborta palavras e clamores em franca gestação. Retorce nossa coluna, desatrela vértebras, ameaça explodir nossos olhos inchados de terror.

Em longos e malditos segundos, foi-se a casa, os alicerces, as histórias infantis, como a dos três porquinhos, estruturadas em finais felizes.

A natureza resolveu rodar sua baiana com violência.  Uma saia de mil pregas e anáguas enormes de cores faiscantes. Ela gargalha, por trás do uivo do vento irado. Asfixiado por não soprar faz tempo.

O tornado avassala a mim e a você, extirpando-nos o pretenso controle de uma insípida quietude. Entra por todos os buracos da nossa cabeça. Rasga nossa carne indolente. Invade nossas concavidades mais macias.  Longe de nos afastar do desespero, o ciclone se aproxima e sussurra: “Eu sou o caos.  Filho dileto das paixões desgovernadas. Daquelas que não se rendem às ordens do cotidiano. Eu sou o caos. Aquele que se cerca de sentimentos nus”.

Horas depois o tormento nos deixou. Você, eu perdi de vista. Me encontrei atônita, sentada em uma calçada, sem árvores, nem pessoas. Paisagem áspera. Porém, de repente, algum som, de voz indefinida, se apossou dos meus ouvidos. “Depois da tempestade vem a bonança”  — foi o que escutei.

Meses mais tarde, consegui desvendar o ditado.  Eu estava grávida. Grávida de uma menina.  Sim, uma menina chamada Natureza.

(Todos os dias eu torço para encontrar você e comemorarmos juntos este milagre).